Centro de Estudos Neo-Reichiano



Corpo do Sonho e Corpo do Sonhador
Por Jean MArc Guilherme- Trainer Internacional de Análise Bioenergética
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“Por vezes, as crianças acordam com tanto

medo que vos dão golpes como que para se

darem conta de que ainda estão vivos”.

(Palavra de sonho da minha avó Anna)

“Que resta aos pobres, senão um coração para lutar?”

Michel Serres, Variations sur le corps, Fayard 1999, p.55


Escolha por exemplo quatro sonhos sem importância. Olhe para o corpo do sonhador. Pergunte-se qual a parte do corpo do sonhador está em jogo no sonho. Traduza a cena em movimento, verá então desfazer-se o caráter, verá vibrar a pessoa, conjugando assim o verbo, o sonho e o corpo em Beleza.

Foi durante um seminário sobre sonho, no Recife, que surgiu a idéia de formular mais profundamente uma reflexão sobre uma obra começada há vinte anos por ocasião da vinda de A. Lowen à Paris (cf Dream and Character, Bioenergétic Analysis, vol. 1, n°2, Spring 1985). Fiquei fascinado durante muitos anos pela obra de Binswanger: Rêve et existence (Ed. Desclée de Brouwer 1954) e pelo preâmbulo de Michel Foucaut que escreve na página 15: “a análise do sonho não se esgotará ao nível da hermenêutica dos símbolos, mas a partir de uma interpretação exterior do âmbito da decifração. Poderá, sem ter que se refugiar numa filosofia, alcançar a compreensão das estruturas existenciais”. Tentei portanto elaborar uma maneira de “trabalhar” com sonho e a energia.



Segue inicialmente o conteúdo verbal de quatro sonhos de participantes do grupo: dois homens (João e Oscar), e duas mulheres (Mamão e Querida):

João encontra um homem da mesma idade que ele. Tem uma pistola na mão para se defender não para atacar.

Mamão (sonho repetitivo) As ondas do mar, poderosas, arrastam tudo com elas. Por vezes ela é arrastada, mas desta vez está salva.

Óscar: Os vampiros atacam a multidão. Um vampiro fêmea salta-lhe à garganta.

Querida: Num edifício muito alto está um elevador. Ela está dentro. O elevador sobe, mas desvia para direita.Ela sente-se perdida.



Qual o denominador comum entre estes quatro sonhos? O medo!

O medo está no centro da existência: “medo de viver” (título de Lowen), medo de morrer. O medo traduz-se no corpo pela tensão muscular crônica (Lowen fala de um medo “gelado”), pela redução da respiração, pelo frio localizado nas extremidades, pelo olhar ausente. Resumindo, por uma diminuição significativa da vitalidade sexual do indivíduo.

João tem medo de matar (ser morto?)

Mamão tem medo de ser submergida (de submerger?)

Óscar tem medo de ser chupado, de lhe tirarem o sangue (de chupar? devorar?)

Querida tem medo de subir e desviar, de se perder.

Serão estes sonhos informações provenientes do imaginário, do inconsciente?

Em que medida nos falam do corpo e do carácter do sonhador?



Hipóteses de trabalho



Freud considera o sonho como o “caminho real” para aceder às forças vivas do inconsciente, à pulsão, ao seu objeto e ao seu objetivo. Reich desenvolve a noção de unidade somato-psíquica através da noção de caráter.

A visão reichiana implica necessariamente que o sonho não seja uma mera emanação do inconsciente com origem forçosamente cerebral, mas que o sonho fale obrigatoriamente do corpo do sonhador na sua unidade somato-psíquica.

A representação clássica de Lowen (Newsletter, vol 18, no 2, 1998) em relação a esta unidade poderia prolongar-se, alterar-se ou completar-se, colocando o sonho algures no centro do esquema no ponto de formação e de descrição da dupla corrente corpo-espírito, por serem tão freqüentes os clientes que nunca sonham (e muitas vezes deixam de se exprimir o soma) e outros que vivem de sonhos e em sonhos (tendo como conseqüência pouco contato com as sensações corporais e com enraizamento).







Metodologia

Com o tempo e com a experiência, estabeleceu-se pouco a pouco uma metodologia na minha prática de tratamento do sonho.



Primeiro o sujeito conta o seu sonho de pé (roupa de banho ou roupa intima).

Lentamente. Desde aí se pode observar os movimentos das pernas, os tiques, o aparecimento de manchas vermelhas, um tom de voz diferente, etc...

Depois, a pessoa é convidada a exprimir:

- a emoção suscitada pelo sonho e a sua inscrição corporal (onde?)

- o contexto do sonho: o que lhe aconteceu na vida real na véspera ou antevéspera do sonho

- as associações entre o conteúdo do sonho e a sua infância, adolescência...



Entretanto o terapeuta olha para o corpo e suas tensões, relacionadas com o conteúdo do sonho. Como um vaivém entre verbo e o corpo. E deixa-se surpreender pelas correspondências...



João tem um corpo hiper-tenso, “fechado”, em estado de extrema vigilância com uma forte tensão ocular, olhos frios, uma respiração fortemente controlada, uma pélvis estreita. Resumindo; um caráter fálico narcísista dominante.



Mamão é uma mulher bonita, cabelos castanhos e olhos brilhantes, a pélvis puxada para trás, estreito e tenso. As são pernas são miúdas com pouco enraizamento. Parece uma sereia. Domina um caráter histérico.



Algo indolente emana do corpo de Oscar. É pálido com olhos aterrorizados e uma boca estreita que faz lábios de desgosto ou sucção. Um caráter passivo feminino dominante.



Querida é uma rapariga delgada, pálida com uma ligeira deformação nos ombros, olhos grandes, assustados e vazios. Um caráter oral esquizóide.



Ao fazer a correspondência entre o corpo do sonho e o corpo do sonhador, percebemo-nos logo que João tem pistolas nos olhos e que já pode ter visto a morte de perto. A sua pélvis está tão bloqueada que lhe é difícil movimentar esta zona.



Mamão tem o sexo nos olhos, mas não tem sexo: a onda respiratória está bloqueada na parte superior da pélvis.



Oscar é exangue, tem um corpo de vítima resignada.



Querida é uma “torre” um pouco desequilibrada com um olhar atento.



Estas observações e correspondências entre sonho e corpo são indispensáveis para perlaboração energética, para pôr em movimento e em música o corpo do sonho e o corpo do sonhador.



As associações do sonhador irão depois apoiar as percepções do analista bioenergético. Servirão de apoio às hipóteses já construídas durante a análise do corpo (v.g. a estrutura do carácter). Portanto:



João foi o guardião da família num bairro carregado de violência. Mamão, foi violada aos 9 anos pelo pai. Oscar diz que o coração lhe foi arrancado por uma mãe intrometida. Querida sofre de fobias graves desde o seu casamento e deve manter-se um modelo para seus pais.

Desta forma, o sujeito adere ao seu sonho revelando o medo e a vergonha que estão na raiz do sonho.

Agora está tudo pronto para continuara marcha do “caminho real”.





A elaboração do sonho



Uma vez que o medo parece o afeto mais importante dos nossos quatro sonhadores, a primeira etapa consiste em explorar o medo graças a um trabalho de aproximação, de pé (Mamão, Querida), em cima do banco (Oscar), através de um movimento de voltar o corpo inteiro, de pé, com o terapeuta a olhar para o cliente com olhos frios. A dinâmica energética fica assim mobilizada na transferência e permite abrir a respiração de forma notável através da expressão do medo (nos olhos, na voz).



A partir desta base comum do medo, o trabalho energético ira diferenciar-se:

- consoante a estrutura do caráter

- consoante o conteúdo do sonho

- consoante a transferência



João, em cima do banco, sente tensões enormes no pescoço, grita de ter a sensação de abafar, os olhos fechados; a dor é insuportável na nuca. Sentado irá depois pousar a cabeça em cima de uma almofada nos meus joelhos e soluçar, chorar longamente, balbuciando “estou sozinho”. Irá depois fazer um movimento de queda para trás (abandonar-se não é fácil para ele, ele próprio considera ter paranóias). Deitado de costas, a respiração irá aumentar, permitindo as vibrações da pélvis. Como se deixasse sair a pistola sem ser ameaçado. A cara está relaxada e o corpo inteiro vibra devagar.



Mamão chora e soluça muito tempo em cima do banco com recordações da violação o que provoca um início de relaxamento da pélvis. Em cima do colchão mobiliza as pernas para exprimir a raiva para com o pai. Uma descarga muito forte. As vibrações atingem a bacia. Graças à posição de arco em cima do colchão, a onda respiratória irá invadir o corpo inteiro.



Oscar. O medo de ser devorado pelo vampiro continua a ser explorado no colchão que provoca uma abertura reflexo do diafragma. Oscar irá em seguida morder a toalha com gritos de vampiro, mobilizando sua energia nos braços e nas pernas em movimento. Acaba numa posição em arco e com uma vibração correta ao longo do corpo.



Querida vai mobilizar toda sua energia batendo os braços e as pernas e gritando: “deixem-me respirar”. Chora e soluça. A sua respiração peitoral e abdominal amplifica-se e as vibrações vão aparecer ao longo da “torre” com uma sensação de estar viva e inteira.


ILUSTRAÇÃO DE UMA SEQÜÊNCIA CLÁSSICA DE ANÁLISE BIOENERGÉTICA:


Medo paralisante

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Amplificação da respiração pelo movimento

¯

Expressão viva dos afetos

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Vibrações

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Integração e sensação de unidade



Conclusão



“Tenho um sonho” transforma-se assim em “Sou o meu sonho”. Segundo Foucaut, a psicanálise (op.cit.p.28) “nunca conseguiu que as imagens falassem”. A análise bioenergética consegue dar vida e voz às imagens do sonho. O trabalho energético permite não só a compreensão do sonho mas também o integrar na experiência corporal íntima. A pessoa sente-se mais em contato com as suas sensações, a sua sexualidade, o seu grounding. Ao fim do trabalho, a beleza do corpo em vibração, do corpo integrado, tem algo fascinante. “Quem faz a experiência? O corpo. Quem inventa? Ele. E quem flutua, corre, e voa... É sim, mais uma vez o corpo. O corpo nu. “Sem ele, a inteligência é pesada, porque só lhe resta a lógica e a memória, atributos maquinais que só servem às máquinas”(Michel Serres, op.cit.p.188).



Agradeço ao João, à Mamão, à Querida, assim como a Jaime Panerai (observador do grupo e estimulador) e Guy Tonella por me terem ajudado a abrir desta forma um pouco mais os segredos do sonho em corpo.

Recife, 07 de novembro de 1999.

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