Centro de Estudos Neo-Reichiano



Educação de educadores: pressuposto psicanalítico ou utopia reichiana?
Por Sara Quenzer Matthiesen
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Freqüentemente debatida, a legitimidade da herança freudiana no percurso desenvolvido por Wilhelm Reich é tratada, por muitos, de modo a não deixar margens para dúvidas. Assentados, na maioria das vezes, em justificativas de diferentes ordens, das quais a mais usual é a de que Reich, entre 1920 e 1934, esteve vinculado oficialmente à Associação Psicanalítica Internacional, autores como De Marchi (1974) e Raknes (1988) fazem uso de periodizações nas quais tem espaço reservado um "período psicanalítico", próprio das primeiras elaborações reichianas. Sob este aspecto, foram 14 os anos em que Reich foi considerado psicanalista, embora se saiba que, ao longo deste período, os descontínuos diálogos com a psicanálise levaram-no à criação da teoria da economia sexual.

Se essa aproximação reforça, em parte, a legitimidade da herança antes mencionada, em nosso entender, os laços com a psicanálise freudiana foram além de uma mera vinculação formal. Mais do que isso, extrapolaram este espaço temporal de, aproximadamente, uma década e meia, perpetuando-se - respeitando-se as particularidades dos desdobramentos subseqüentes - na consagração da idéia de profilaxia das neuroses. Esta idéia está evidente ao longo da obra reichiana, ora como uma possibilidade de melhorar a realidade existente, buscando aquilo que Albertini (1994) denominou como o "possível dentro do impossível", ora como uma possibilidade real de evitar - e não simplesmente minimizar - as neuroses por meio de medidas preventivas, fazendo jus ao significado dessa modalidade essencialmente médica.

Longe de querermos abarcar todas as aproximações (e apropriações) conceituais existentes entre Freud e Reich, objeto da análise de autores como Wagner (1994), nosso intuito será o de investigar a legitimidade de uma herança freudiana nos escritos reichianos, para isso, iremos nos centralizar no pressuposto psicanalítico inicial incorporado por Reich acerca da educação de educadores, reflexo da articulação pretendida entre a profilaxia das neuroses e a educação. Tomada, muitas vezes, como uma referência tipicamente reichiana, a gênese dessa articulação se encontra na psicanálise freudiana, portanto, até certo ponto, é comum a ambos os autores. Entretanto, é alvo de divergências posteriores, dados os desdobramentos tanto da psicanálise - que a abandona - como da teoria da economia sexual - que a impregna de características próprias, cujas particularidades merecem ser revistas.

Entretanto, não há como negar que Reich continua no campo aberto por Freud, desenvolvendo algumas de suas idéias. Isso se torna evidente quando nos concentramos na análise das preocupações com a educação, presente na obra de ambos os autores, e na influência de pressupostos educacionais freudianos nos desdobramentos reichianos. Ou seja, mais do que se pensa, as premissas reichianas, sobretudo as educacionais, parecem estar calcadas nas proposições freudianas para a educação, ainda que seja incomum uma leitura dos pressupostos educacionais reichianos tendo como base aquilo que fora também abordado por Freud.

Respeitadas as peculiaridades inerentes a essa afirmação, podemos dizer que Reich foi, em parte, herdeiro de Freud em termos conceituais, sobretudo no que diz respeito a pressupostos educacionais. Esse trabalho tem como premissa básica que as referências à educação, presentes ao longo da obra de Wilhelm Reich, refletem a influência das idéias de Freud, das primeiras décadas do século XX, acerca desta temática. A base desta argumentação assenta-se no fato de que Reich entra em contato com a psicanálise a partir de 1919-1920 e, conseqüentemente, com a discussão acerca da possibilidade de profilaxia das neuroses calcada na educação, nela constituída ao longo dos anos. Aparentemente, herdou o trato freudiano com a problemática da educação que surgiu na esteira de uma outra preocupação freudiana - também herdada por Reich: "as relações entre o padecimento psíquico e a moral sexual de finais do século XIX" que, em última instância, revelavam a "possibilidade de uma psicoprofilaxia educativa na infância" (Lajonquière, 2000a, p. 91).

Todavia, o alerta de que não é possível encontrarmos tratado algum de educação em Freud2 é também válido para Reich, embora este último se refira a esta temática ao longo de toda sua obra, ora como pano de fundo de outras preocupações, ora dedicando-se à elaboração de textos em que a problemática da educação aparece de forma mais evidente.3 Não temos, portanto, o intuito de construir um tratado de pedagogia reichiana. Pretendemos, apenas, reunir subsídios para refletir sobre a seguinte questão: será possível uma educação profilática em relação às neuroses? Se Freud, inicialmente, acredita na possibilidade de profilaxia das neuroses, isto é, defende a possibilidade de uma "educação psicoprofilática à luz da psicanálise" (Lajonquière, 2000a), Reich a ela dará crédito em suas próprias elaborações teóricas. Talvez por isso lhe seja dado um caráter utópico; aliás, essa é a trilha freudiana (a da profilaxia das neuroses) que elege para fomentar sua teoria, ligando-a, como o fez Freud inicialmente, aos desígnios da educação. Antes de Reich, Freud pensou ser possível "depositar esperanças em tal função profilática da educação"4, o que faz dele um discípulo legítimo quanto à apropriação de pressupostos educacionais freudianos. O desenvolvimento perspicaz desses pressupostos por parte de Reich fez com que alguns fossem tomados como sendo genuinamente reichianos, dada a importância que assumem no campo da teoria da economia sexual.

Inevitavelmente, a busca das relações existentes entre os pressupostos reichianos e as idéias freudianas voltadas à educação atravessa a polêmica em torno de uma possível periodização do pensamento de Freud. Ainda que nosso intuito seja apenas demonstrar que as abordagens, nesse campo, estão longe de ser consensuais, vale registrar que, embora haja aqueles que atribuem a Freud uma fase otimista, que logo cede espaço ao pessimismo, há os que defendem um otimismo sempre presente no pensamento freudiano, em particular quando vinculado à temática educacional. Esta posição se manifesta, sobretudo, quando consideram que Freud foi um eterno preocupado com a cultura, fazendo de suas críticas à pedagogia da época uma constante em sua obra. Reforçando esse particular, diríamos que existem aqueles que, na esteira de Millot (1992), defendem a existência de um primeiro e de um segundo Freud, acoplando-o às modificações em torno da possibilidade de profilaxia das neuroses. Há, também, aqueles que, como Lajonquière (2000b), não negam o declínio no investimento da idéia de profilaxia das neuroses até o seu abandono, ainda que não enterrem a perspectiva crítica freudiana em relação à cultura e ao ideário pedagógico da época. Em última análise, essa perspectiva apregoa que a desilusão freudiana em relação à psicoprofilaxia não arrastou consigo a esperança de que a aplicação da psicanálise à educação das futuras gerações pudesse alterar o status quo pedagógico. Desse modo, considera a expectativa de mudanças na educação uma constante no pensamento freudiano, embora a vinculação à idéia de "ilusão profilática", em alguns textos, contribua para as nuances nesse campo.

Ainda que a problemática da educação fizesse parte das preocupações freudianas desde finais do século XIX, de modo que o "mal-estar, pensado até certo ponto como o efeito de uma defesa psíquica perante a contradição entre o desejo sexual e as prescrições morais da época", revelasse a possibilidade de uma "psicoprofilaxia educativa na infância", logo, "à medida em que Freud avançou na formulação do modelo pulsional - explicação metapsicológica do aparelho psíquico - a forma de se pensar a relação entre o indivíduo e a cultura, bem como o estofo da educação, foram se definindo paulatinamente" (Lajonquière, 2000a, p. 91). Assim, a idéia de "ilusão profilática" sobre a educação, presente em textos de Freud de 1907, 1908, 1913, 1916-17 e 1926, sofrerá modificações ao longo de sua obra até o sepultamento, em 1937, da possibilidade de uma educação psicoprofilática pautada na psicanálise. Contudo, reforçando esse particular, nota-se que "a impugnação de se pensar numa profilaxia do mal-estar psíquico não levou consigo a esperança de Freud numa educação infantil diferente à subministrada na sua época", de modo que, embora reconheça a questão da profilaxia como problemática, não abandona a crítica à educação então vigente, mantendo uma aposta na "troca dos fins educativos" (Lajonquière, 2000a, p. 91).

Vale lembrar que esta discussão não foi, entretanto, privilégio das abordagens freudianas nem, tampouco, das posteriores abordagens reichianas.5 Ao que parece, o debate entre psicanálise e educação6 predominava no período vivido por estes autores, cujas contribuições estão inseridas no bojo de uma discussão que se avolumava entre os profissionais, sobretudo psicanalistas, que almejavam uma aproximação - quiçá, uma aplicabilidade - entre ambas as áreas em prol de uma "pedagogia psicanalítica", cuja viabilidade era motivo de suas investigações.7 Um verdadeiro "incêndio" a se propagar no campo educacional, como previu Freud, em 1909. A disseminação da psicanálise entre os professores primários demonstrava a conquista de outros terrenos, para além do campo médico, aliás, como era seu objetivo.8 Realçando o alto valor social do trabalho realizado por seus amigos pedagogos, Freud (1925/1996) não apenas reconhece sua extraordinária importância e possibilidade de desenvolvimento, sobretudo no que se refere à aplicação da psicanálise à pedagogia e à educação das gerações seguintes, como se diz recompensado por sua filha, Anna Freud, ter feito deste tema - por ele negligenciado - a missão de sua vida (Freud, 1932/1996).

Embora Freud (1932/1996) considerasse restritas suas contribuições a essa discussão, o mesmo não se pode dizer de alguns de seus discípulos, os quais eram inclusive incentivados por ele para que se aprofundassem no estudo da psicanálise dentro de suas especialidades e, com isso, ampliassem as descobertas concernentes à sua aplicação. Foi, portanto, nesse sentido que num dos primeiros Congressos de Psicanálise, realizado em Salzburgo, em 1908, Sandor Ferenczi, em conferência que tratava do tema "Psicanálise e Pedagogia", questionava, em nome da primeira, o caráter repressivo da educação da época, identificando a pedagogia como um "caldo de cultura das neuroses mais diversas" (Filloux, 1997, p. 8). Outro exemplo é Oskar Pfister - pastor pedagogo e não propriamente psicanalista -cujo livro, Método Psicanalítico, introduz a psicanálise em seu programa de ensino aos pastores e educadores, merecendo, em 1913, o seguinte comentário de Freud:

Possa o uso da psicanálise ao serviço da educação trazer a realização das esperanças que educadores e médicos põem nela! Um livro como este de Pfister, que se propõe dar a conhecer a psicanálise aos educadores, poderá então contar com a gratidão das gerações futuras. (Filloux, 1997, p. 8)

Entretanto, com exceção da carta aberta que escreve ao Dr. M. Fürst em 1907, sobre "O Esclarecimento Sexual das Crianças" (Freud, 1907/1996), Freud, até 1908, não havia abordado, numa tentativa de aplicação de uma à outra, a relação entre psicanálise e educação. Contudo, dada sua posição no âmbito psicanalítico - no qual seguidores e detratores o consideram como o "pai" da psicanálise - e das relações pessoais e intelectuais, antes descritas, que tanto influenciaram Reich, não seria demais considerar que, das reflexões freudianas acerca da relação entre ambas as áreas, que emergem, por sua vez, em meio às demais postulações psicanalíticas, a educação de educadores, acompanhada pela idéia de profilaxia das neuroses, indica pontos comuns entre o discurso educacional de Freud e o de Reich, capaz, portanto, de propiciar ao segundo o desdobramento de pressupostos manifestos na obra do primeiro.



Pressupostos educacionais freudianos e alguns de seus desdobramentos em Reich: a educação de educadores

Mais do que a idéia de profilaxia das neuroses, Freud, no período inicial de sua obra, tinha um "sonho possível" (Kupfer, 1995), ou seja, apostava que as neuroses poderiam ser prevenidas graças a uma educação apropriada (Lajonquière, 1999). Fiel a Freud, Reich centra seus esforços na demonstração de que é possível prevenir ou agravar a neurose, dependendo do tipo de educação empregada. Confrontando ambas as áreas do conhecimento, numa espécie de complementação múltipla, Freud dirá que a educação deve ser profilática - prevenindo a formação das neuroses -, enquanto a terapia deveria corrigir a patologia por meio da reeducação. Mais do que isso, Freud (1913/1996a) dirá que uma educação baseada nos conhecimentos psicanalíticos pode constituir a melhor profilaxia individual das neuroses. Assim, se iniciado na psicanálise, o educador poderia identificar quais as disposições que comprometem o desenvolvimento da criança, exercendo uma influência profilática, ainda enquanto esta é sadia ou detectando as primeiras indicações na direção de uma neurose futura, evitando que esta se desenvolva posteriormente. Freud defende, então, a necessidade de uma espécie de educação de educadores - pressuposto educacional que mais tarde merecerá a atenção de Reich - argumentando sobre a necessidade de o educador educar-se, tendo em vista a importância de seu inconsciente na determinação da ação educativa (Cifali & Imbert, 1999). Nessa perspectiva, permite, em 1925, que outros - além de médicos - que estejam empenhados na educação, também exerçam a psicanálise, dizendo:

Uma vez que este tenha aprendido a psicanálise pela experiência em sua própria pessoa, adquirindo a capacidade de aplicá-la como coadjuvante de seu trabalho em casos mistos ou limítrofes, não há dúvida de que deveria permitir-lhe o exercício da análise e não tratar de impedi-lo por motivos mesquinhos. (Freud, 1925/1996, p. 343)

A aposta na profilaxia das neuroses por meio da educação, capaz de resultar numa "nova geração de homens", é tida como um "otimismo da época" (Filloux, 1997) - no mínimo curioso, haja vista que se estava à beira da Primeira Guerra Mundial -, que logo cede espaço a um outro tipo de interpretação, evidente no prefácio do livro de Aichhorn, de 1925 (Freud, 1925/1996). É retomada a idéia de que os interessados pela educação de crianças deveriam receber uma formação psicanalítica, submeter-se à análise e experimentá-la em si próprios, além de não confundir a educação com intervenção psicanalítica ou querer substituí-la, embora persista a idéia de que a psicanálise poderia ser aplicada, pela educação, como um recurso auxiliar no trato com a criança.

Ou seja, se Freud, como lembra Lajonquière (2000b), afirma, num primeiro momento, que a psicanálise acrescentada ao processo educativo pode ter fins profiláticos, numa espécie de "tratamento misto" e "análise de crianças", num segundo momento, declara ter a educação uma tarefa sui generis, que não pode ser confundida nem substituída pela influência psicanalítica, ainda que possa intervir como um "recurso auxiliar", quando for necessário. Menos otimista em relação à possibilidade de profilaxia, Freud indica que a educação, mais propriamente a pedagogia, não poderia ser concebida apenas sob este aspecto. Entretanto, defendia a idéia de um educador analisado ou com informação psicanalítica, que não visasse a uma "profilaxia individual", mas à elaboração de um processo educativo direcionado para uma "educação voltada para a realidade" (Filloux, 1997), em "oposição àquela promovida pela pedagogia religiosa" (Lajonquière, 2000a). Esta, própria de sua época, impunha severas restrições às atividades e curiosidades intelectuais.

Assim, considerando que a crítica à educação é uma constante nos textos freudianos, Lajonquière (2000b) enfatiza que, se Freud, num primeiro momento, se iludiu com uma educação menos repressiva, sempre apostou na possibilidade de um trato diferenciado dos adultos para com as crianças, de modo que pudessem se dirigir a elas de uma forma diferente daquela oriunda da moral de seu tempo, em nome da então proposta "educação para a realidade".

Mesmo diante dessa perspectiva modificada, mencionará, como nos lembra Filloux (1997), que a aplicação da psicanálise à pedagogia e à educação das futuras gerações é um tema especialmente importante da psicanálise, ainda que sua ênfase recaia sobre os problemas oriundos da psicanálise infantil, em que busca determinar como a educação pode realizar o máximo e prejudicar o mínimo.

Ao abordar as dificuldades inerentes ao trabalho de um educador, responsável, por exemplo, pelo reconhecimento da individualidade e vida psíquica da criança e pelo fornecimento de uma quantidade exata de amor, embora mantendo a autoridade, Freud (1932/1996) considerará que a única preparação adequada para esta profissão é uma preparação psicanalítica. Esta deve envolver uma análise pessoal (nos moldes da educação de educadores, mencionada anteriormente) como uma medida profilática mais eficaz do que a própria análise das crianças.9

Assim, "apesar de se iludir por algum tempo com a possibilidade de profilaxia", Freud

nunca cifra suas esperanças num manejo quantitativo das restrições pulsionais inerentes à intervenção educativa e, portanto, suas constantes críticas à pedagogia da época visam uma modificação do status quo educativo em prol de uma qualidade diferente de intervenção dos adultos junto às crianças (Lajonquière, 2000a, p. 93).

Na esteira destas formulações, também Reich se vale da idéia de que havia uma relação entre educação e constituição das neuroses - cuja raiz, nitidamente, se apresenta em textos freudianos das primeiras décadas do século XX -, proclamando, em prol da profilaxia das neuroses, a necessidade, entre outras, de uma educação de educadores, influência freudiana que se fará presente em escritos reichianos.



Wilhelm Reich e a educação de educadores

Herdado de certas idéias de Freud, o tema de educação de educadores perpassa a obra de Reich, com base, também, nas contribuições de Siegfried Bernfeld, pedagogo e autor do texto "Sisyphos oder die Grenzen der Erziehung" [Sísifo ou as fronteiras da educação], publicado pela Internationaler Psychoanalytischer Verlag, em 1926. Apesar de ser possível o desdobramento dessa idéia, é fato que Reich se assenta no pressuposto freudiano de que o educador deveria iniciar-se na psicanálise, não apenas teoricamente, mas experimentando-a em si próprio, já que os resultados das intervenções educativas dependeriam, também, do estado emocional do educador.

Será, portanto, analisando as atitudes "inconscientes" de pais e educadores para com a criança que Reich compreenderá a utilização de formas educativas extremas (permissividade e severidade excessivas), como características daquilo que denomina como "compulsão a educar" [Erziehungszwang]. Em outras palavras, diríamos que Reich observou que "a agitação ou a desordem entre as crianças era normalmente o resultado de atitudes neuróticas inconscientes por parte dos educadores", fato que o fez registrar que "o educador deve agir constantemente sobre si próprio", já que uma "educação de acordo com a economia sexual é absolutamente impossível enquanto os educadores não estiverem libertos de atitudes inconscientes ou, pelo menos, não tenham aprendido a conhecê-las e a controlá-las" (Reich, 192-/1975, p. 48).

Ou seja, diante de manifestações pulsionais das crianças, o educador recorda os seus próprios desejos reprimidos e as proibições educativas de que foi alvo, devendo, num primeiro momento, libertar-se, por meio de um trabalho de análise de si mesmo, dos preconceitos que a sua própria educação lhe legou, tentando tornar conscientes as próprias tendências instintivas recalcadas, nelas reconhecendo as semelhanças com as manifestações que encontra nas crianças. Deve-se, portanto, "educar o educador" para que ele possa "assistir calmamente à manifestação natural do instinto da criança" e se, "apesar dos esforços não conseguir considerar as manifestações sexuais infantis sem repulsa e desgosto, então, faria melhor em renunciar de forma geral ao trabalho de educador" (Schmidt, 19--/1975, p. 27).10

Mas, pelo contrário, muitos educadores, demonstrando um total desconhecimento da "idiossincrasia da criança", consideram que devem intervir de alguma forma, até mesmo impondo frustrações desnecessárias. Sob o pretexto de estarem agindo pelo bem da criança, consideram como "doentio" ou "inadequado" tudo aquilo que lhes é "desagradável" e "incômodo" e, com irritação, por meio de seus atos educativos, tratam-na injustamente, muitas vezes, cometendo barbaridades. A criança, por sua vez, se sente injustiçada, pois, apesar de precisar ser "boa", "adulta", "tranqüila", "modesta" e "obediente", é, muitas vezes, proibida pelos pais de fazer coisas que eles mesmos fazem, sob a justificativa de que é ainda "muito pequena". Esse argumento é motivado por duas atitudes análogas da parte dos pais: "querem realizar na criança as suas próprias aspirações e, por isso, fazer com que ela cresça quanto antes, mas ao mesmo tempo exigem que os seus próprios direitos não sejam perturbados." (Reich, 1926/1975, p. 63).

Ou seja, o educador se julga obrigado a fazer algo, a "educar, ainda que nada haja a educar", sentindo como "ofensa pessoal", como um "testemunho negativo da sua arte educativa", quando a sua "vítima" não se comporta de forma adulta, provocando, com isso, reações infantis que vão desde a manifestação de uma "heróica indiferença", a reações violentas.

Esse seria, segundo Reich, um dos motivos responsáveis pela compulsão a educar: uma "ambição insatisfeita" que se caracteriza por um verdadeiro "bombardeio educativo", ao qual os pais submetem seus filhos, muitas vezes, já neuróticos. Assim, com o intuito de que a criança se comporte de maneira adulta, os pais insistentemente utilizam frases, tais como: "Sente-se direito"; "fique quieto"; "diga bom dia"; "venha cá"; "tire a roupa"; "não suje as mãos" etc., "sem pausa nem descanso", o que, certamente, um adulto não suportaria. Com base nisso, Reich afirma que as "intervenções educativas são do tipo das frustrações desnecessárias", que fazem da educação um "equivalente neurótico dos adultos", já que todos os conflitos conhecidos, tais como ambição doentia, "insatisfação sexual, discussões matrimoniais, numa palavra, tudo o que pertence ao inventário de uma neurose, se repercute na educação da criança." (Reich, 1926/1975, p. 64).11

O segundo motivo da compulsão a educar está atrelado a uma tentativa de corrigir a própria infância, isto é, reparar em outras crianças os males que a ele, educador, foram causados. Todavia, as tendências inconscientes de vingança contra quem o educou interferem, certamente, na realização de seu "propósito consciente" que poderá aparecer, em relação aos educandos, como um "verdadeiro sadismo". Assim, o intuito de "corrigir a própria meninice só pode significar vingar-se", uma vez que "a vontade educativa comporta em si uma compulsão sádica para educar, fundamentada no inconsciente." (Reich, 1926/1975, p. 66).

Um terceiro motivo seria o frustrado "desejo de ter filhos", fazendo com que algumas mulheres se tornem melhores educadoras, ao adotarem como seus os filhos de outros, embora o desejo de ser educador desapareça com a realização efetiva desse desejo.12

Isso tudo indica que as "motivações conscientes" que levam o educador a educar nada mais são do que "racionalizações secundárias", já que "inconscientemente" o educador teria outras motivações. Negligenciado, este aspecto talvez justifique a grande dificuldade de apreender os problemas da educação. O único caminho, ressalta Reich (1926/1975), seria a psicanálise individual dos educadores, a fim de convencê-los do verdadeiro significado de sua atuação - aliás, caminho já aludido por Freud em textos anteriores -, mesmo que se defendam, alegando estarem sempre agindo pensando "no bem" da criança. Assim, com base em pressupostos educacionais freudianos e sem deixar de observar que "a questão da educação é inseparável da organização social e das neuroses", Reich, nos anos 20, aponta para a necessidade de uma "educação de educadores", observando que o educador, livre de suas neuroses, poderia se tornar capaz de educar, interferindo (negativamente) o menos possível na formação da criança, estando pronto para reconhecer e corrigir os erros que poderiam implicar em conseqüências graves.

Esse é apenas um exemplo de como Reich, partindo do campo terapêutico, pretendia ser útil no campo educacional. Ou seja, demonstra que Reich objetivava, entre outras coisas, chegar a uma teoria da economia psíquica que pudesse ter um uso prático no campo da educação, embora considerasse que a sociedade deveria tornar possível ou rejeitar sua aplicação prática (Reich, 1933/1995).

Por fim, vale reforçar que uma análise mais detida do tema da educação de educadores, na obra de Freud e de Reich, revelou afinidades educacionais entre ambos os autores, demonstrando que, também, por este viés, Reich continua num caminho aberto, inicialmente, por Freud. Ainda que pouca atenção tenha recebido neste campo, não é demais salientar a necessidade de aprofundamento neste particular, de modo a contribuir cada vez mais para a compreensão daquilo que Reich denominara como pedagogia econômico-sexual13, alvo de necessárias investigações futuras.



Referências

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1 Parte integrante da tese de doutorado intitulada A educação em Wilhelm Reich: Da Psicanálise à Pedagogia Econômico-Sexual, defendida no Programa de Pós - graduação em Educação da UNESP-Marília, sob a orientação da Profa. Dra. Isabel Maria Loureiro, em 12/12/01. Apresentado no II Colóquio do Lugar de Vida/ LEPSI, São Paulo, em 2000.
2 O próprio Freud (1925/1996) revela os limites de suas contribuições acerca da educação, embora, em outras oportunidades - sobretudo em "O interesse científico da psicanálise" (1913/1996a), expresse sua pretensão de que a psicanálise não ficasse "restrita ao âmbito da cura de certas formas de nervosidade" (Lajonquière, 2000b, p. 91).
3 Sobre os textos de Reich traduzidos para o português, ver Matthiesen (2002).
4 Tendo em vista que não é objetivo deste texto averiguar os desdobramentos posteriores da teoria freudiana, sugerimos a leitura de Millot (1992) e Lajonquière (2000b), que observam, de modo próprio, que Freud, mais tarde, foi levado a enterrar essa idéia, apesar da polêmica em torno de como isso ocorreu.
5 Reich (1926/1975) chega a afirmar que um educador poderia dar maiores contribuições ao tema em voga do que ele próprio.
6 Cabe observar que a palavra alemã Erziehung, traduzida para o inglês como education e para o português como educação, tem, na língua alemã, um significado mais amplo que engloba o sentido genérico de criação. Contudo, terá em alguns momentos esse significado restringido ao camp o pedagógico, quando, então, será acentuada uma discussão entre a psicanálise e a pedagogia propriamente dita.
7 No trato dessa temática, Filloux (2000) aborda quatro períodos, a saber: 1. período iniciado em 1908, referente às relações de Freud com seus discípulos educadores; 2. período entre 1926-1937, referente às publicações da Zeitschrift für Psychoanalytische Pädagogik [Revista de Pedagogia Psicanalítica]; 3. período iniciado em 1945, referente à pedagogia de inspiração psicanalítica; 4. período posterior a 1970, referente ao desenvolvimento de pesquisas dedicadas à abordagem psicanalítica no campo pedagógico.
8 Em 1912, Freud escreve a Pfister: "Estou para ceder à tentação de ter certeza de obter no mundo dos pedagogos um novo círculo de leitores, círculo que de outro modo permaneceria fechado (...) Nossa capacidade de expansão nos meios médicos é infelizmente muito restrita; é preciso ganhar terreno, onde o pudermos" (Cifali & Imbert, 1999, p. 10).
9 Assim, os "métodos educacionais empregados, quaisquer que sejam eles, parecem ter pouca importância frente à parte incontrolável que está sob influência do i nconsciente. Isto justifica a aspiração de Freud de que os educadores recebam uma formação analítica que lhes permita, por um lado, compreender melhor a criança e, por outro, exercer uma ação corretiva sobre seu desenvolvimento psíquico mediante o método psicanalítico." (Millot, 1992, p. 74).
10 Explicando esse particular, Schmidt (19--/1975) ressalta que o adulto recalca em seu inconsciente diferentes aspectos de seu ser, ao longo de seu desenvolvimento, e quando encontra tais propriedades no mundo exterior, nas crianças, por exemplo, causam-lhe irritação e aversão. Mas se formado numa linha psicanalítica, o educador procuraria tomar consciência do processo de recalcamento, descobrindo a origem dessa aversão exagerada, fazendo com que desapareça e dispense a mesma atenção a todas as crianças, sem distinção. Muitas vezes, dados os processos inconscientes, o educador perde o interesse pelas crianças, fechando-se em si mesmo, sem perceber que os caprichos e agitações das crianças não são mais do que reações a comportamentos pedagógicos falsos de sua parte.
11 Assim, o pai-educador, por meio de sua própria patologia, produziria uma frustração "desnecessária" no educando, já que a tendência é zangar-se com quem o colocou nessa "incômoda situação de sentir a própria ignorância ou instâncias afetivas inconfessadas" (Reich, 1926/1975, p. 62).
12 Reich (1927/1977) dirá que embora, para alguns, somente a vinda de um filho possa consolidar o casamento, este somente se consolidará mediante condições prévias, como a "harmonia psico-genital" dos pais, pois, quando esta não se estabelece, as crianças tornam-se, pelo contrário, uma nova fonte de mal-estar, receptoras ora de uma "pesada" coação, ora de um amor excessivo não saciado na relação conjugal, que só podem ter conseqüências prejudiciais para o seu desenvolvimento.
13 Sobre o assunto ver Matthiesen (2001).

Artigo publicado em : Psicol. USP vol 14 no.2 São Paulo 2003

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