Centro de Estudos Neo-Reichiano



O Corpo nos Processos de Aprendizagem. Wilhelm Reich e Alicia Fernández
Por Maria Terezinha Carrara Lelis
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CONSIDERAÇÕES FINAIS


Quando eu sabia todas as respostas, modificaram-se as perguntas.
Autor desconhecido


Durante o desenvolvimento da pesquisa duas perguntas, fundamentalmente, nos
acompanharam. A primeira delas diz respeito à condição de enrijecimento, de congelamento
da prática pedagógica autoritária, em que independente da utilização ou não de novos recursos
tecnológicos, os professores, em sua maioria, continuam com uma atitude autoritária,
verticalizada, de não incorporação dos alunos em seu fazer pedagógico. Muitas teorias são
desenvolvidas, muitos cursos são dados, e acontece que o professor não muda sua prática
autoritária. Onde está o problema?
A segunda questão que nos colocamos é: o que acontece com criança saudáveis que
não conseguem aprender? Esse é um dos desafios antigos no seio da escola, no dizer da
Coordenadora da escola em que realizamos a pesquisa: “A gente fica se questionando mesmo!
Se uma criança está se desenvolvendo bem na maioria dos aspectos, por que em algum deles
não aprende?” Onde está o problema?
Dessas duas questões poderíamos derivar milhares de outras, sabemos disso. Mais do
que respostas, nesse momento é importante sustentarmos as perguntas que possam nos
inquietar perante essa realidade em que temos dificuldades em encontrar alternativas frente ao
que está posto em nosso país. Nesse sentido, esse trabalho procurou encontrar alguns
caminhos que pudemos percorrer em busca de respostas, que serão provavelmente
provisórias, pois acreditamos ser a mudança uma característica de nosso objeto de estudo – o
homem, a sua história e a construção de suas relações de ensino-aprendizagem.
Assim, pensamos, ao finalizar esse trabalho, numa leitura e em algumas reflexões a
partir do Mito de Eco (lenda grega reproduzida por Ovídio, poeta romano que viveu de 43 a.C
– 17 d.C):
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Eco era uma linda ninfa, amante dos bosques e das montanhas, companheira
favorita de Diana em suas caçadas. No entanto, tinha uma característica:
falava demais e costumava sempre dar a última palavra em qualquer
conversa da qual participava. Certa vez, a deusa Hera desconfiou que seu
marido, Zeus, a estava traindo com as ninfas e saiu à sua procura.
Caminhando pelos bosques deparou-se com Eco que, assustada com a
presença de Hera, passou a entretê -la em uma conversa sem fim. Percebendo
a artimanha de Eco, Hera a condenou a não mais poder falar uma só palavra
por iniciativa própria, a não ser como resposta quando questionada.
Passeando pelo bosque, Eco avistou Narciso, um jovem de extrema beleza,
filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liríope. Narciso preferia viver só
porque ainda não tinha encontrado nenhuma pessoa bela que fosse
merecedora do seu amor. Eco começou a seguí-lo e, sentindo-se apaixonada,
quis dizer a ele o quanto o queria, mas isso não era possível porque era
preciso esperar que Narciso falasse primeiro para, então, ela lhe responder.
Distraída pelos seus pensamentos, Eco não percebeu que o jovem se
aproximava dela e tentou se esconder rapidamente. Narciso ouviu o barulho
e caminhou em sua direção perguntando: – Há alguém aí? E ouviu uma
resposta: Aí!!! Olhando à sua volta e não vendo ninguém, queria saber quem
estava se escondendo dele, dona daquela voz tão bonita. E disse: Vem!
Ouvindo como resposta: Vem!!! Por que foges de mim? Perguntou ele.
Foges de mim? Respondeu Eco. Eu não fujo! Disse Narciso. E completou:
Vem, vamos nos juntar! Nos juntar!!! Respondeu Eco, que não mais se
contendo de felicidade saiu correndo em direção a Narciso. Assustado,
Narciso gritou: Afasta-te! Prefiro morrer a te deixar me possuir!
Imediatamente ouviu como resposta: Me possuir!!! Narciso fugiu, e a ninfa
voltou a se esconder no meio dos bosques, cheia de vergonha. Daí em diante,
Eco passou a viver nas cavernas e montanhas, sem se alimentar nem ter
qualquer tipo de contato com outros seres. Seu corpo foi se definhando até
desaparecer completamente, restando-lhe apenas o eco de sua voz, que
continua a responder a todos que a chamem, conservando o costume de dizer
sempre a última palavra.
Eco foi punida por esconder a traição de Zeus a sua mulher, Hera. Punida naquilo que
a diferenciava das outras ninfas que eram belas como ela: falar demais. Sua condenação se
deu em não mais falar por iniciativa própria, a não ser como resposta quando questionada, e
repetindo a última palavra. Assim, ao ser destituída da linguagem como uma forma de
expressão, que é um privilégio do humano, é como ter sido destituída da capacidade de pensar
e somente poder repetir o que o outro pensou, ou o que o outro falou.
Podemos pensar se não é isso que exigimos de nossos alunos, quando queremos que
eles digam nas provas o que nós ensinamos e não o que eles pensaram. O professor repete o
que aprendeu e o que consta nos manuais que ele deve ensinar a seus alunos. Quando ouvimos
um eco, ouvimos em seguida vários retornos desse mesmo eco, isso teria alguma semelhança
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com uma sala de aula? Quando um professor adulto chega à sala de aula, ele já está
adulterado na sua condição de ser pensante, tornando-se um eco.
E ainda, Eco foi destituída também de seu amor, de seu desejo, pois não podia se fazer
entender, não podia se comunicar, não podia se relacionar. E, tragicamente, encontra-se com
Narciso que só vê a si mesmo. E assim Eco, ao somente repetir o que o outro fala, e ao não
conseguir realizar o seu desejo de amor, vê o seu corpo definhar. O corpo, sede de sua
inteligência e de seu desejo, de sua história, de sua relação com o mundo.
Em uma sociedade narcísica, individualista, do culto da beleza e da aparência e do
corpo escultural, perdemos a capacidade de reconhecer nossos desejos, nos submetendo a
padrões esculturas e de estética. Nosso corpo adulto está adulterado, enrijecido, congelado,
como se estivesse invisível como Eco, condenados que estamos a repetir padrões corporais de
aparência e beleza, condenados a repetir um conhecimento na escola destituído da vida,
condenados a repetir comportamentos antinaturais, estereotipados, e autoritários. Segundo
Lowen (1979) indivíduos alienados produzem uma sociedade alienada, pois o processo de
alienação do indivíduo que é a perda do senso de identidade tem suas raízes na situação
familiar:
Sendo educado conforme as imagens de sucesso, popularidade, encanto
sexual, sofisticação intelectual, e cultural, status, auto-sacrifício, e assim por
diante, o indivíduo enxerga os outros como imagens, em vez de encará-los
como pessoas. Cercados de imagens, ele se sente isolado. Se reage às
imagens, sente-se alienado. Na tentativa de corresponder à sua própria
imagem, sente-se frustrado e roubado de suas satisfações emocionais. A
imagem é uma abstração, um ideal, um ídolo que exige os sacrifícios do
sentimento pessoal. A imagem é uma concepção mental que, superposta ao
ser físico, reduz a existência corporal a um papel secundário. O corpo se
transforma num instrumento da vontade a serviço da imagem. O indivíduo
fica então alienado da realidade de seu corpo (LOWEN, 1979, p.18, grifo do
autor).
Esse processo de alhearmo-nos da própria corporeidade, a ponto de perdermo- nos, nos
aparta dos sentimentos, das sensações e da possibilidade de pensar o mundo em que vivemos,
nos submetendo a uma lógica social dual e perversa. Reich, há mais de setenta anos atrás, teve
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a sensibilidade de perceber essa realidade que vivemos, e demonstrar que os fenômenos
humanos não são naturais, imutáveis e que eles podem ser modificados.
Ficamos cada vez mais espantados com a vida dupla que as pessoas são
forçadas a viver. O comportamento externo, que varia de acordo com a
posição e a classe social, revela -se uma formação artificial. (...) O policial
mais formidável e mais temido; o acadêmico mais magnânimo e reservado; a
“socialite” elegante e inacessível; o burocrata “obediente”, que funciona
como uma máquina – todos mostram ser caracteres inofensivos, com os mais
simples desejos, angústias e impulsos de ódio. [...] Em termos de análise do
caráter, a diferença entre o ritmo sexual vivo e o charme sensual estudado;
entre a dignidade natural, sem afetação, e a dignidade fingida; entre a
modéstia genuína e a falsa; entre a expressão de vida genuína e a
representada; entre o ritmo muscular vegetativo e o balançar dos quadris e
endireitamento dos ombros que tenta imitar o movimento espontâneo; entre
a fidelidade que nasce da satisfação sexual e a que nasce do medo e da moral
– poderíamos continuar indefinidamente -, é a mesma diferença que existe
entre uma estrutura psíquica revolucionária nascente e uma firmemente
conservadora; entre uma vida viva e substitutos sem significação para a vida.
Nessas diferenças encontramos uma representação direta da base psíquicoestrutural
e material de ideologias que, pelo menos em princípio, são
acessíveis à experiência humana (REICH, 1933/ 1998, p.303-304).
E assim, ao voltarmos às perguntas que formulamos ao longo dessa pesquisa,
refletimos que a maioria de nós nos tornamos “repetidores exitosos”, “ecos” de
conhecimentos estanques, sem vida, sem corpo. Quem repete não muda, não precisa mudar,
não pode mudar. Mas sabemos que esta é uma sentença dos deuses e que nós humanos
trazemos a capacidade de “a partir de pouco, fazer muito”, e aquilo que resta e não foi
massacrado e anulado de nossa pulsão epistemofílica nos permite construir caminhos e
encontrar possibilidades. A nossa sentença humana é aprendermos sempre.
Esse estudo nos mostra que os pontos nevrálgicos das dores do corpo do professor se
situam no pescoço e ombros, local de conexão da cabeça com o corpo, simbolicamente local
da junção da razão e da emoção. Os professores apresentam histórias diferentes, vidas
diferentes, origens diferentes, mas a instituição escolar nos modula, nos coloca em um padrão
corporal de dissociação mente – corpo, e por isso, o corpo sofre.
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Ao enfatizar demasiadamente o papel da imagem, ficamos cegos à realidade
da vida do corpo e dos seus sentimentos. É o corpo que se funde em amor,
que se arrepia de medo, que treme de raiva, que procura calor e contato. À
parte do corpo, estas palavras não passam de imagens poéticas.
Experienciadas no corpo, elas ganham a realidade que dá sentido à
existência. Baseada na realidade do sentimento corporal, a identidade possui
substância e estrutura. Abstraída dessa realidade, a identidade torna-se
somente um artefato social, um esqueleto sem carne. (LOWEN, 1979, p.19)
Se formos capazes de reconhecer a dinâmica da formação do caráter para poder
flexibilizá-lo em seus traços mais enrijecidos, e nos utilizarmos melhor das qualidades, das
características mais positivas e mais saudáveis, poderemos recuperar a espontaneidade e a
naturalidade. E se formos também capazes de reconhecer a modalidade de aprendizagem para
poder adquirir mobilidade de pensamento e expressão, poderemos usar a criatividade e a
originalidade. Nesse sentido podemos apontar que o trabalho corporal e o resgate da história
de vida repõem o que a instituição escolar retira: amplia a capacidade respiratória; incorpora o
toque como forma de recuperar as sensações; possibilita recobrar a fala enquanto linguagem
expressiva, a capacidade de se ver nas relações e a escutar o aluno e se escutar; e recupera a
pulsão epistemofílica. Assim poderemos lidar com o outro (alunos e colegas de trabalho)
naquilo que há de saudável nele, e extrair o que há de melhor em nosso potencial criativo,
reconhecendo nossa singularidade e a do outro também. Como no quadro de Dali1 que ilustra
essa conclusão, nosso corpo expressa que “somos muitos”, e poderemos sair dessa condição
de repetidores, como ecos de uma sociedade excludente e autoritária.
Ao terminar esse trabalho, não poderia deixar de voltar às protagonistas dessa
pesquisa, já que foram elas que deram “vida” aos conceitos teóricos trazidos para nossa
reflexão. E algumas falas delas para nós soam como “sonhos” de superação do medo e da
violência do preconceito racial, de convivência com crianças espontâneas e criativas, de
possibilidades de se trabalhar com arte, emoção e afetividade, e vão ao encontro da
1 Salvador Dali (1904 – 1989): importante pintor espanhol do período surrealista possue uma obra vastíssima,
tamb ém é contemporâneo de Reich.
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solidariedade humana. “Sonhos” que se transformam em combustível para o trabalho que nos
desafia cotidianamente. Acreditamos que não poderia ser diferente, em virtude de que esse
trabalho foi desenvolvido com pessoas que são professoras. Na verdade, o espaço educacional
é ou deveria ser um espaço prenhe de sonhos e de possibilidades.
Juntamente com essas professoras sonhamos recuperar a indignação, como um
sentimento e um grito que possa se fazer presente nos corações e mentes de nossos
professores:
Então, não há nenhuma esperança [?] Há esperança, muita
esperança se nós reunirmos coragem e decência para encarar nosso
miserável fracasso. Então, só então, estaremos aptos para ver onde e
como poderemos começar e ajudar (REICH, 1950/1983).

O texto faz parte da dissertação de mestrado da autora.

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