CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando eu sabia todas as respostas, modificaram-se as perguntas. Autor desconhecido
Durante o desenvolvimento da pesquisa duas perguntas, fundamentalmente, nos acompanharam. A primeira delas diz respeito à condição de enrijecimento, de congelamento da prática pedagógica autoritária, em que independente da utilização ou não de novos recursos tecnológicos, os professores, em sua maioria, continuam com uma atitude autoritária, verticalizada, de não incorporação dos alunos em seu fazer pedagógico. Muitas teorias são desenvolvidas, muitos cursos são dados, e acontece que o professor não muda sua prática autoritária. Onde está o problema? A segunda questão que nos colocamos é: o que acontece com criança saudáveis que não conseguem aprender? Esse é um dos desafios antigos no seio da escola, no dizer da Coordenadora da escola em que realizamos a pesquisa: “A gente fica se questionando mesmo! Se uma criança está se desenvolvendo bem na maioria dos aspectos, por que em algum deles não aprende?” Onde está o problema? Dessas duas questões poderíamos derivar milhares de outras, sabemos disso. Mais do que respostas, nesse momento é importante sustentarmos as perguntas que possam nos inquietar perante essa realidade em que temos dificuldades em encontrar alternativas frente ao que está posto em nosso país. Nesse sentido, esse trabalho procurou encontrar alguns caminhos que pudemos percorrer em busca de respostas, que serão provavelmente provisórias, pois acreditamos ser a mudança uma característica de nosso objeto de estudo – o homem, a sua história e a construção de suas relações de ensino-aprendizagem. Assim, pensamos, ao finalizar esse trabalho, numa leitura e em algumas reflexões a partir do Mito de Eco (lenda grega reproduzida por Ovídio, poeta romano que viveu de 43 a.C – 17 d.C): 186 Eco era uma linda ninfa, amante dos bosques e das montanhas, companheira favorita de Diana em suas caçadas. No entanto, tinha uma característica: falava demais e costumava sempre dar a última palavra em qualquer conversa da qual participava. Certa vez, a deusa Hera desconfiou que seu marido, Zeus, a estava traindo com as ninfas e saiu à sua procura. Caminhando pelos bosques deparou-se com Eco que, assustada com a presença de Hera, passou a entretê -la em uma conversa sem fim. Percebendo a artimanha de Eco, Hera a condenou a não mais poder falar uma só palavra por iniciativa própria, a não ser como resposta quando questionada. Passeando pelo bosque, Eco avistou Narciso, um jovem de extrema beleza, filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liríope. Narciso preferia viver só porque ainda não tinha encontrado nenhuma pessoa bela que fosse merecedora do seu amor. Eco começou a seguí-lo e, sentindo-se apaixonada, quis dizer a ele o quanto o queria, mas isso não era possível porque era preciso esperar que Narciso falasse primeiro para, então, ela lhe responder. Distraída pelos seus pensamentos, Eco não percebeu que o jovem se aproximava dela e tentou se esconder rapidamente. Narciso ouviu o barulho e caminhou em sua direção perguntando: – Há alguém aí? E ouviu uma resposta: Aí!!! Olhando à sua volta e não vendo ninguém, queria saber quem estava se escondendo dele, dona daquela voz tão bonita. E disse: Vem! Ouvindo como resposta: Vem!!! Por que foges de mim? Perguntou ele. Foges de mim? Respondeu Eco. Eu não fujo! Disse Narciso. E completou: Vem, vamos nos juntar! Nos juntar!!! Respondeu Eco, que não mais se contendo de felicidade saiu correndo em direção a Narciso. Assustado, Narciso gritou: Afasta-te! Prefiro morrer a te deixar me possuir! Imediatamente ouviu como resposta: Me possuir!!! Narciso fugiu, e a ninfa voltou a se esconder no meio dos bosques, cheia de vergonha. Daí em diante, Eco passou a viver nas cavernas e montanhas, sem se alimentar nem ter qualquer tipo de contato com outros seres. Seu corpo foi se definhando até desaparecer completamente, restando-lhe apenas o eco de sua voz, que continua a responder a todos que a chamem, conservando o costume de dizer sempre a última palavra. Eco foi punida por esconder a traição de Zeus a sua mulher, Hera. Punida naquilo que a diferenciava das outras ninfas que eram belas como ela: falar demais. Sua condenação se deu em não mais falar por iniciativa própria, a não ser como resposta quando questionada, e repetindo a última palavra. Assim, ao ser destituída da linguagem como uma forma de expressão, que é um privilégio do humano, é como ter sido destituída da capacidade de pensar e somente poder repetir o que o outro pensou, ou o que o outro falou. Podemos pensar se não é isso que exigimos de nossos alunos, quando queremos que eles digam nas provas o que nós ensinamos e não o que eles pensaram. O professor repete o que aprendeu e o que consta nos manuais que ele deve ensinar a seus alunos. Quando ouvimos um eco, ouvimos em seguida vários retornos desse mesmo eco, isso teria alguma semelhança 187 com uma sala de aula? Quando um professor adulto chega à sala de aula, ele já está adulterado na sua condição de ser pensante, tornando-se um eco. E ainda, Eco foi destituída também de seu amor, de seu desejo, pois não podia se fazer entender, não podia se comunicar, não podia se relacionar. E, tragicamente, encontra-se com Narciso que só vê a si mesmo. E assim Eco, ao somente repetir o que o outro fala, e ao não conseguir realizar o seu desejo de amor, vê o seu corpo definhar. O corpo, sede de sua inteligência e de seu desejo, de sua história, de sua relação com o mundo. Em uma sociedade narcísica, individualista, do culto da beleza e da aparência e do corpo escultural, perdemos a capacidade de reconhecer nossos desejos, nos submetendo a padrões esculturas e de estética. Nosso corpo adulto está adulterado, enrijecido, congelado, como se estivesse invisível como Eco, condenados que estamos a repetir padrões corporais de aparência e beleza, condenados a repetir um conhecimento na escola destituído da vida, condenados a repetir comportamentos antinaturais, estereotipados, e autoritários. Segundo Lowen (1979) indivíduos alienados produzem uma sociedade alienada, pois o processo de alienação do indivíduo que é a perda do senso de identidade tem suas raízes na situação familiar: Sendo educado conforme as imagens de sucesso, popularidade, encanto sexual, sofisticação intelectual, e cultural, status, auto-sacrifício, e assim por diante, o indivíduo enxerga os outros como imagens, em vez de encará-los como pessoas. Cercados de imagens, ele se sente isolado. Se reage às imagens, sente-se alienado. Na tentativa de corresponder à sua própria imagem, sente-se frustrado e roubado de suas satisfações emocionais. A imagem é uma abstração, um ideal, um ídolo que exige os sacrifícios do sentimento pessoal. A imagem é uma concepção mental que, superposta ao ser físico, reduz a existência corporal a um papel secundário. O corpo se transforma num instrumento da vontade a serviço da imagem. O indivíduo fica então alienado da realidade de seu corpo (LOWEN, 1979, p.18, grifo do autor). Esse processo de alhearmo-nos da própria corporeidade, a ponto de perdermo- nos, nos aparta dos sentimentos, das sensações e da possibilidade de pensar o mundo em que vivemos, nos submetendo a uma lógica social dual e perversa. Reich, há mais de setenta anos atrás, teve 188 a sensibilidade de perceber essa realidade que vivemos, e demonstrar que os fenômenos humanos não são naturais, imutáveis e que eles podem ser modificados. Ficamos cada vez mais espantados com a vida dupla que as pessoas são forçadas a viver. O comportamento externo, que varia de acordo com a posição e a classe social, revela -se uma formação artificial. (...) O policial mais formidável e mais temido; o acadêmico mais magnânimo e reservado; a “socialite” elegante e inacessível; o burocrata “obediente”, que funciona como uma máquina – todos mostram ser caracteres inofensivos, com os mais simples desejos, angústias e impulsos de ódio. [...] Em termos de análise do caráter, a diferença entre o ritmo sexual vivo e o charme sensual estudado; entre a dignidade natural, sem afetação, e a dignidade fingida; entre a modéstia genuína e a falsa; entre a expressão de vida genuína e a representada; entre o ritmo muscular vegetativo e o balançar dos quadris e endireitamento dos ombros que tenta imitar o movimento espontâneo; entre a fidelidade que nasce da satisfação sexual e a que nasce do medo e da moral – poderíamos continuar indefinidamente -, é a mesma diferença que existe entre uma estrutura psíquica revolucionária nascente e uma firmemente conservadora; entre uma vida viva e substitutos sem significação para a vida. Nessas diferenças encontramos uma representação direta da base psíquicoestrutural e material de ideologias que, pelo menos em princípio, são acessíveis à experiência humana (REICH, 1933/ 1998, p.303-304). E assim, ao voltarmos às perguntas que formulamos ao longo dessa pesquisa, refletimos que a maioria de nós nos tornamos “repetidores exitosos”, “ecos” de conhecimentos estanques, sem vida, sem corpo. Quem repete não muda, não precisa mudar, não pode mudar. Mas sabemos que esta é uma sentença dos deuses e que nós humanos trazemos a capacidade de “a partir de pouco, fazer muito”, e aquilo que resta e não foi massacrado e anulado de nossa pulsão epistemofílica nos permite construir caminhos e encontrar possibilidades. A nossa sentença humana é aprendermos sempre. Esse estudo nos mostra que os pontos nevrálgicos das dores do corpo do professor se situam no pescoço e ombros, local de conexão da cabeça com o corpo, simbolicamente local da junção da razão e da emoção. Os professores apresentam histórias diferentes, vidas diferentes, origens diferentes, mas a instituição escolar nos modula, nos coloca em um padrão corporal de dissociação mente – corpo, e por isso, o corpo sofre. 189 Ao enfatizar demasiadamente o papel da imagem, ficamos cegos à realidade da vida do corpo e dos seus sentimentos. É o corpo que se funde em amor, que se arrepia de medo, que treme de raiva, que procura calor e contato. À parte do corpo, estas palavras não passam de imagens poéticas. Experienciadas no corpo, elas ganham a realidade que dá sentido à existência. Baseada na realidade do sentimento corporal, a identidade possui substância e estrutura. Abstraída dessa realidade, a identidade torna-se somente um artefato social, um esqueleto sem carne. (LOWEN, 1979, p.19) Se formos capazes de reconhecer a dinâmica da formação do caráter para poder flexibilizá-lo em seus traços mais enrijecidos, e nos utilizarmos melhor das qualidades, das características mais positivas e mais saudáveis, poderemos recuperar a espontaneidade e a naturalidade. E se formos também capazes de reconhecer a modalidade de aprendizagem para poder adquirir mobilidade de pensamento e expressão, poderemos usar a criatividade e a originalidade. Nesse sentido podemos apontar que o trabalho corporal e o resgate da história de vida repõem o que a instituição escolar retira: amplia a capacidade respiratória; incorpora o toque como forma de recuperar as sensações; possibilita recobrar a fala enquanto linguagem expressiva, a capacidade de se ver nas relações e a escutar o aluno e se escutar; e recupera a pulsão epistemofílica. Assim poderemos lidar com o outro (alunos e colegas de trabalho) naquilo que há de saudável nele, e extrair o que há de melhor em nosso potencial criativo, reconhecendo nossa singularidade e a do outro também. Como no quadro de Dali1 que ilustra essa conclusão, nosso corpo expressa que “somos muitos”, e poderemos sair dessa condição de repetidores, como ecos de uma sociedade excludente e autoritária. Ao terminar esse trabalho, não poderia deixar de voltar às protagonistas dessa pesquisa, já que foram elas que deram “vida” aos conceitos teóricos trazidos para nossa reflexão. E algumas falas delas para nós soam como “sonhos” de superação do medo e da violência do preconceito racial, de convivência com crianças espontâneas e criativas, de possibilidades de se trabalhar com arte, emoção e afetividade, e vão ao encontro da 1 Salvador Dali (1904 – 1989): importante pintor espanhol do período surrealista possue uma obra vastíssima, tamb ém é contemporâneo de Reich. 190 solidariedade humana. “Sonhos” que se transformam em combustível para o trabalho que nos desafia cotidianamente. Acreditamos que não poderia ser diferente, em virtude de que esse trabalho foi desenvolvido com pessoas que são professoras. Na verdade, o espaço educacional é ou deveria ser um espaço prenhe de sonhos e de possibilidades. Juntamente com essas professoras sonhamos recuperar a indignação, como um sentimento e um grito que possa se fazer presente nos corações e mentes de nossos professores: Então, não há nenhuma esperança [?] Há esperança, muita esperança se nós reunirmos coragem e decência para encarar nosso miserável fracasso. Então, só então, estaremos aptos para ver onde e como poderemos começar e ajudar (REICH, 1950/1983).
O texto faz parte da dissertação de mestrado da autora.
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