Centro de Estudos Neo-Reichiano



O Sonho: A Poesia do Corpo
Por Jean Marc Guillerme
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Apresentação na Conferência do 7º Congresso de Biossíntese em Natal
 

O SONHO : POESIA DO CORPO

Gosto de caminhar na natureza de Bretanha. Cada caminho tem uma luz particular, um som, um cheiro, umas dificuldades, uns secretos, uma própria beleza, uma poesia sutil.
Cada caminho é encantador.
Convido vocês no caminho dos sonhos, no caminho real segundo a expressão famosa de Freud.

“Tenho um sonho” dizia Martin Luther King. Este homem, que incarnava o direito

á igualdade e á justiça, vivia simultaneamente o seu sonho e ajudava os negros a

realizar, pelo menos parcialmente, o seu próprio sonho.....

O que fazer dos nossos sonhos?

Esquece-los ?

Dize-los?

Interpreta-los?

Vive-los?

Até por eles morrer?

Até por eles fruir?

Vamos visitar o sonho, como visitamos um companheiro de vida, um amigo íntimo, talvez um guia.

Após muitos anos de companhia, o sonho continua a ser para mim uma paixão e um enigma.

É como um corredor em que avanço e onde descubro continuamente as pessoas que perdi de vista e de repente reencontradas em novos espaços, iluminações espantosas e acontecimentos incongruentes.
Em suma, o sonho é uma continuada aventura.
É como a felicidade: quando passa é preciso abraça-la.
No caminho do sonho, fui acompanhado pelo pensamento analítico, por uma pitada de gestalt, pelo corpus energético, e provavelmente, em segredo, sonhos da minha mãe, que me devia serem realizados...
(quem não é o sonho de, pelo menos, um dos seus progenitores?)

Mas o que é o sonho?

1..O sonho é objeto de curiosidade. Estar em contato com o seu sonho é aventurar –se nos seus medos, nos seus desejos, no medo dos seus desejos, deixar se surpreender pelo insólito, pelo estranho, pelo absurdo. O sonho é a outra face de si.

2. O sonho é uma fonte, uma fonte de inspiração. Vem da ordem do sopro (pneuma). Ele inspira, ele faz respirar o corpo. Esta fonte está fora do controle
do Si, e imprevisível nas suas manifestações. Neste sentido, o sonho é
uma forma de borbulhar e falar sobre a vitalidade do sonhador.

3. O sonho é um movimento. Claro que existem sonhos estáticos, de
fotografias, de paisagens, mas a maioria dos sonhos incluem um movimento
nas quatro dimensões:

recuar, fugir
perseguir
voar
cair
Como entender o movimento? Como traduzir o movimento para se compreender o sonho?

4. O sonho é uma criação única (mesmo os que são repetitivos apresentam variações). É como um objeto de arte que se contempla num certo ângulo, com uma determinada luz. Sem se conseguir apanhar o objeto na sua totalidade, pois no instante seguinte, apresenta se de outra forma com uma nova perspectiva que nos leva a vê-lo de outro modo.
O sonho é maior do que a sua compreensão, e principalmente do que a sua
Interpretação (JY Monnat)

5.O sonho é emoção. A expressão emocional contida no sonho ou apercebida no momento do acordar merece a nossa atenção. O medo está nele em permanência: sufocar, matar, ser morto, arrebentar em pedaços, perder o pé, etc.

6.O sonho fala do corpo e do carácter do sonhador: parte de cima e parte de baixo, a cabeça e o enraizamento, os circuitos energéticos sob a forma de caminhos, riachos, corredores: a pele como superfície, o sexo e o coração. Há sonhos orais, sonhos masoquistas, sonhos narcísicos, etc mas a complexidade reside no coração do sonho como no do carácter. E o sonho é maior que o carácter.

7.O sonho é uma oferenda, um presente, simultaneamente íntimo e generoso. Como um objeto transicional (Pontalis, Khan). É um tesouro que se revela ao sujeito, se abre, se contempla. Também pode ser partilhado quando se encontra um ouvido bondoso. Medo e controle matam a expressão do sonho.

8.O sonho é uma música.
“Deitado num quarto escuro, vou ser atacado. Sinto me imobilizado, anestesiado. Quero gritar mas a minha voz ( um grito de terror) está abafada”.
Fazer falar este sonho através de associações não basta. Como entrar e sair do terror? Com a voz e a respiração. O sonho aqui é um convite a deixar sair essa voz soterrada nas angustias da infância. Pelo murmúrio, pelo gemido, o soluço e mesmo o grito.
E encontrar de outro modo o canto do sonho.

9.O sonho é graça e erotismo.
Por vezes o corpo exibe se, no sonho, sem qualquer pudor.
Exemplo: “em criança ele adulava a sua prima adolescente. Ei-la a aparecer deitada sobre uma cama, a ser lidada por um homem, a cabeça apoiada sobre o peito do sonhador, um seio generoso a descoberto, o pelos negros da axila a brilhar, os braços relaxados, sorria beatificamente.”
Como uma escultura de um templo budista ou uma pintura de Pompeia. Beleza de um corpo a fruir. Beleza do sonho.



Agora quero olhar para o sonho no seu lado poético.
Provavelmente por estar em fim de vida, as minhas certezas já não são o que eram, porque nenhuma abordagem do sonho é exaustiva e que o Belo e a Poesia me ajudam a viver plenamente e a olhar o mundo do sonho com serenidade e plenitude.

Assim vou evocar convosco:

A poesia do sonho
A poesia do corpo
A poesia do trabalho do sonho no corpo.


A POESIA DO SONHO

Podemos olhar para o sonho como uma ativação neuronal, como a emergência do recalcado e dos traumatismos passados (Freud), como uma problemática existencial (Binswanger), como uma gestalt própria do sujeito (Perls), como uma manifestação do carácter (Reich) sob a forma de uma energia bloqueada (estagnada, explosiva, agressiva, etc)
Podemos também considerar o sonho como a emergência e a manifestação de um ser poético que não aparece no seu estado de vigília.
Entendo isto como uma história fora do comum, insólita, com por vezes o maravilhoso, com uma estética particular que surpreende o próprio sonhador ou quem ele conta o sonho.
Por outras palavras o sonho apoia se numa certa realidade (um corpo, uma história, um ambiente de vida) para nos levar ao imaginário, num mundo em que não temos qualquer domínio. O sonho tem assim um aspecto surrealista que pode surpreender, maravilhar , horrorizar. Por vezes o sonho é um poema, algo de sublime, difícil de definir. Como uma vibração da alma.


Aqui temos um exemplo:

“Dois pedreiros muito peludos no rosto e no pescoço estão em cima na fachada de uma casa que estão restaurando. Estão cochilando. Após um tempo, eles descem para comer. Transformam se então em ursos. Surge então o traidor armado de uma longa lança. Ataca um no olho e outro na boca. Os ursos caem, sangrando...Após um tempo, acordam, lambem se mutuamente para se curarem e levantam se, muito decididos a vingarem se e matarem o traidor. Apercebem se da presença da mulher do traidor. Chamam na e pedem lhe para se despir da parte de cima do corpo e para se sentar. Aproximam se um de cada lado da mulher e mamam os seus seios e ela sorri com grande prazer.”
Na véspera do sonho, o sonhador estava chocado com uma traição vivida pela sua colega, o que o fez ser devolvido á sua própria experiência de ter sido traído.
Neste sonho acotovelam se o horror da violência sanguinária e a doçura extrema da cura. É também o hino ao amor. A narrativa do sonho é um poema que apazígua, que faz as pazes com a dor e com a traição. Aqui a vingança já não é um prato frio mas um chupa-chupa substancial e poético.

Outro sonho:

“sou chamado a ir tratar uma mulher em crise aguda da bexiga. Vou lá, consciente da minha incompetência. Na entrada do quarto estão guardas. Um grande professor de medicina também está á entrada. Ele administrou lhe um tratamento e não quer deixar entrar charlatões. Por influência das pressões exteriores ele deixa me finalmente entrar. A mulher está estendida numa cama, provavelmente nua, coberta por um rico tecido azul escuro. Está agitada, a sofrer, a gemer. O que fazer? Decido colocar as minhas mãos sobre ela, surfando sobre os espasmos. Sem resultado aparente. Paro, exausto e choro de pé, imóvel, sobre a minha impotência, tapando a cara de vergonha. A vergonha cobre me. Os espasmos param. Tudo está subitamente calmo. A mulher está curada.”

Na véspera do sonho, o sonhador tinha recebido uma cliente que lhe anunciou bruscamente que tinha um câncer de mama. Ele gosta desta cliente. Sente se desolado, mas ajudou a, a relaxar a tensão no peito ,para deixar sair a angustia e ele sentiu se impotente perante o drama e o risco de vida e de morte.

Este sonho apazígua e comove simultaneamente o sonhador. É como um poema que transcende a sessão. Ele encena, como no teatro as personagens da interação : o meio ambiente, as pessoas próximas que têm uma função protetora, o corpo medico representado pelo professor e a sua injeção, e o terapeuta que, como, ele, transpõe as linhas, as barreiras, para estar no coração do sujeito. Com esta pergunta fundamental: que fazer para tratar?
Seguir a onda da vibração, acompanha- la, ouvir a música do corpo, e chorar de impotência. E o corpo apazígua-se no silêncio.

É dizer também que o sonho tem uma função curativa no que respeita ás feridas narcísicas (aqui: a impotência). Acontece mesmo que palavras vindas do sonho, consolam, curam o sonhador, tal como esta pronunciada pela avó do sonhador:
“ acontece que as crianças têm tanto medo quando acordam, que nos dão pontapés para terem a certeza que ainda estão vivos”
ou esta outra palavra vinda do sonho: “ quando você tinha um ano, a sua mãe era tão ocupada que ela não o podia proteger do seu pai.”


O corpo é um poema, o sonho dá lhe forma.


A POESIA DO CORPO


Um dia, em Maceió, um homem da rua entrou numa sala onde estava apresentando uma conferencia sobre a Beleza do Corpo Energético. Quando terminei, ele surpreendeu me perguntando me se poderia fazer qualquer coisa para o seu problema cardíaco. Porque não ? ele tinha um corpo masoquista com uns olhos maliciosos. No banco energético ele deixou sair uma voz poderosa , mantida...Depois, de pé, todo o seu corpo vibrou de forma impressionante.
Ele sentiu se vivo, radioso. Foi vivamente aplaudido por todos.
Quem sabe se ainda hoje ele se sente radioso?

Esta é uma ilustração da poesia do corpo em vibração, em vibração com o mundo e consigo mesmo. Expressão da vitalidade, da voz, da potência. Contudo este homem vivia provavelmente na submissão, na resignação, no silêncio dos pobres.


“A poesia é outra coisa” escreveu Guillevic, poeta bretão.


Ouçamos a voz dos poetas que falam do corpo. São raros, mas existem para nossa felicidade.

Mulher andando nua pela casa
Envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante
É um andar vestida de nudez,
Inocência de irmã e corpo d´água

O corpo nem sequer é percebido
Pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
Dando este nome á vida: castidade.

Pelos que fascinavam não perturbam
Seios, nádegas, (tácito armistício)
Repousam da guerra. Também eu repouso

Carlos Drummond de Andrade em “o amor natural”

É dizer que a poesia do corpo é a expressão do indizível. A pessoa pode não ter palavras para se dizer mas revela se pela:
tonalidade da sua voz
qualidade do seu olhar
sua postura e gestualidade
sua sensualidade ou a sua secura
seu movimento: inibido, voluntário, incerto, gracioso

“A poesia é outra coisa”. Essa “outra coisa” pode nos fascinar e nos estimular a fazer do sonho uma re – criação.


A POESIA DO TRABALHO DO SONHO NO CORPO

Escutar o sonho, associá-lo, interpretá-lo. Este é o modo tradicional de burilar o sonho sob a inspiração do Mestre dos Sonhos: Freud.

Durante a minha juventude e mesmo bastante depois, apliquei este modelo. E como muitos modelos, este lá se foi...
Efetivamente a interpretação é em grande parte subjetiva, direi mesmo projetiva...dois terapeutas não terão certamente a mesma interpretação, e longe de estarmos seguros que a interpretação provoque uma mudança significativa no cliente....

Pouco a pouco , fui compreendendo que o sonho era movimento (os pedreiros-ursos a descer, a cair, a levantarem se, a abandonarem se ao prazer)

Compreendi, então, que o sonho era energia (violenta, sexual, captadora, etc), que o sonho era, na maioria das vezes, corporal, diretamente: os corpos em ação, indiretamente: as casas, os veículos, os animais.

Compreendi que o sonho tinha uma dimensão poética, difícil de traduzir em palavras e interpretações. Pode acontecer que o sonho provoque o espanto, a estupefação, o horror. Por vezes, aí reside o contra-transfer, sutil.

Como estar face a um sonho?

É de evitar, perturbar o sonhador com comentários, pedidos de explicação. A postura útil e necessária me parece ser a da contemplação, da observação do conjunto do sonho e dos detalhes, do espanto, do respeito sempre, da curiosidade frequente. Esta postura do terapeuta condiciona o trabalho que se segue.

Como fazer com o sonho e o sonhador?

O medo está no coração do sonho, disse o há pouco: o medo de sonhar, em primeiro. O medo do pesadelo em segundo, aquele que vos acordar completamente perturbado. O medo de muitos dos conteúdos do sonho: sufocar, explodir, cair, matar, morder, gritar; ser engolido, morto, levado...

Ora sabemos em análise bioenergética e em biossíntese que o medo provoca reações corporais fortes tais como a redução ou o bloqueio da respiração, a inibição do movimento, a tensão muscular cronica, a redução da espontaneidade e da livre expressão...

Vamos então pôr em relação o medo contido no sonho e a expressão corporal desse medo, vamos fazer viver esse medo no corpo para libertar a energia congelada.

Por outras palavras: não vamos interpretar o sonho, mas fazer viver o sonho resgatando o seu poder criador.
Tomemos dois exemplos de sonho

1-um sonho com elevador que geralmente traduz um medo de sufocar num espaço fechado, de cair, de perder o controle.Vou tentar ilustrar, o trabalho energético do sonho com Ana Rita que gentilmente se ofereceu para fazer uma demonstração.
Naturalmente perguntaria á pessoa se este sonho é repetitivo, o que pode ter provocado o seu aparecimento no passado e particularmente o que ocorreu na véspera do sonho, qual foi a sensação e a emoção ao acordar...aqui vamos nos ficar pela parte energética
(salto sem respirar
salto com respiração
salto com voz
salto com movimento livre
vibração
estiramento do corpo)

2-Tomemos um outro exemplo: um clássico sonho de queda.
Normalmente ele é expressão de um carácter rígido ou narcísico do sonhador. Ele representa uma luta permanente entre o desejo de largar, de se abandonar e um medo, mesmo terror de se sentir sem defesas, exposto, vulnerável.
Vou utilizar de novo Ana Rita para fazer um movimento de queda (criado por Lowen ).....
Uma coisa é permitir ao sujeito de fazer verbalmente a ligação entre a sua situação atual – por exemplo o seu medo de ser amado) e o seu medo de criança (ser traído, partido, humilhado), outra coisa é reviver, a partir do material do sonho, o seu medo, num movimento de queda onde todo o seu corpo vai ficar implicado na resistência em cair, com a expressão viva da angustia, da dor....até ao momento em que o corpo vai cair, vibrar, sentir, respirar livremente, soluçar profundamente
Sentir finalmente que podemos deixar ir sem morrer (ou sem matar),
Que podemos deixar ir sem que seja o fim do mundo
Que cair não é assim tão perigoso quando alguém está presente.
Que sentir a energia livre do nosso corpo é bom.

“cai em silencio
cai na velhice
cai no sonho
cai na música
cai no universo
cai da cabeça a teus pés
cai da cabeça á fonte
como o navio que afunda apagando seus fogos
Vicente Huidobro (Chile)

É assim que corpo e sonho se entrelaçam, se burilam.

Podemos tocar então na beleza e na graça, na poesia do sonho e do corpo reunidos.

Conclusão

Contudo cada um de nós é portador de sonhos.
O sonho dos seus pais.
Os seus próprios sonhos
Os sonhos da humanidade.
O sonho é tão grande que ele nos convida á modéstia.

Acho que teremos que prestar atenção aos sonhos
Dos jovens (para desenvolver o ser poético)
Dos pobres (para desenvolver o sentido de esperança e a capacidade de mover-se)
Das mulheres (para favorecer um ser forte, respeitado, sensual)
Dos homens (para favorecer um ser assertivo, firme, sexual).

O sonho pode ser um programa apaixonante nos “campos da vida”.

Jean Marc Guillerme


Conferência apresentada no 7º Congresso de Biossíntese de Natal “Campos da Vida”. 2015

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