Centro de Estudos Neo-Reichiano



Empatia e Intersubjetividade - Algumas Implicações Clínicas
Por José Alberto Moreira Cotta - Trainer Internacional de Biossíntese.
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"O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça, mas com o coração, que o outro veja mundos que nós não vemos."
Rubem Alves

RESUMO

Nesse trabalho, abordarei diferentes significados do termo ressonância em psicoterapia corporal. Direi que os diferentes empregos desse termo, assim como a clássica leitura corporal proposta por Lowen, são formas e instrumentos para se conhecer o Outro, bem como dizem de modos de relação intersujeitos. Relacionarei esses significados com o conceito de empatia e com aquilo a que Coelho Jr. e Figueiredo (2004) denominam de "matrizes da intersubjetividade".

PALAVARAS-CHAVE: ressonância, empatia, intersubjetividade, leitura corporal, psicoterapia corporal.
 Este trabalho é parte de minhas pesquisas de doutoramento em Psicologia Clínica, que realizo no Instituto de Psicologia da USP, sob a orientação do Prof. Dr. Gilberto Safra. Inicialmente concebido como trabalho semestral da disciplina "O Conceito e a Experiência da Intersubjetividade: Desdobramentos na Filosofia, na Psicologia Fenomenológica Experimental e na Psicanálise", ministrada pelos Profs. Drs. Nelson Coelho Jr. e Luís Cláudio Figueiredo, foi apresentado na mesa-redonda "Empatia, Intersubjetividade e Psicoterapia Corporal", no VII Congresso Internacional de Psicoterapia Corporal, realizado em São Paulo, em Outubro de 2005. Publicado no no. 14/2005 da Revista Reichiana, editada pelo Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae e republicado no no. 15/2006 dessa mesma Revista Reichiana.

ABSTRACT
In this work, I shall mention different aspects of the use of the word resonance in the field of body psychotherapy. I shall say that the different meanings of such term, together with the classic body lecture proposed by Lowen, are forms and instruments used in order to get to know the other, as well as are modes of inter-subject relations. I shall relate the mentioned meanings with the concept of empathy as well as with what Coelho Jr. and Figueiredo (2004) call “matrix of inter-subjectivity”.

KEY-WORDS: resonance, empathy, inter-subjectivity, body lecture, body psychotherapy.

Introdução

"Empatia, intersubjetividade e psicoterapia corporal". Esse o título dessa mesa-redonda. É possível que alguns se perguntem o que empatia e intersubjetividade - palavras mais afeitas à psicanálise - têm a ver com esse evento de psicoterapia corporal. Ainda mais em um congresso cujo título é "A psicoterapia corporal e as redes sociais".
Se assim é, iniciarei minha apresentação fazendo uma espécie de diálogo com esses que, talvez, estranhem e se perguntem da adequação dessa mesa-redonda:
Começarei pela noção de rede social, não por um de seus sentidos mais usuais em nosso campo - o de aplicações extraclínicas da psicoterapia corporal -, mas, no seguinte sentido: a palavra rede pode ter vários significados. Escolho um deles, qual seja o de linhas de interseção, que interagem entre si, reforçam a si mesmas, com o intuito de não deixar vazar e dar suporte a algo que lhes é comum: uma bola de futebol de salão, quando arremessada para além da linha do gol, é segura, contida pela rede (pelo menos é o que se espera dela!) – pelas interseções de suas linhas. Caso sua linha fosse frágil, a rede se romperia, a bola atravessaria o campo e, muito provavelmente, machucaria um dos assistentes do jogo, ou se perderia pela vizinhança, ou, ainda, poderia ser furada, quer seja por um prego, quer seja atropelada por um veiculo. Ou seja, caso a rede não seja suficientemente boa para conter a bola, danos indesejados podem ocorrer, quer seja à rede, à bola, a outrem, ou a todos.
É claro que a rede que acolhe a bola pode ser feita de um só tipo de linha. Utilizar outras linhas não só poderia tornar a rede mais colorida, como, também, mais dinâmica e, quiçá, dar mais sustentação à bola. Em psicoterapia, dá-se o mesmo: creio ser necessária uma rede de linhas interligadas, que se reforçam e dão suporte àquilo que lhes é comum: a díade paciente/terapeuta e o ato clínico. Refiro-me não só às "linhas" reichianas e neo-reichianas, como vegetoterapia, orgonoterapia, bioenergética, biossíntese, etc. Mas a outros saberes - como a psicanálise, a filosofia, a epistemologia, a ontologia, a literatura, a teologia, a antropologia - que, acredito, podem estar ligados e interagir com a "linha" corporalista com a que nos identificamos, sem que com isso se incorra no erro do ecletismo.
Sendo assim, farei, agora, algumas considerações sobre o fenômeno clínico da ressonância e da leitura corporal, entendidos como modos de se conhecer o Outro (no caso, o cliente), relacionando-os ao conceito de Coelho Jr. e Figueiredo (2004) denominado de "figuras da intersubjetividade".

Tipos de Ressonância

No campo das psicoterapias corporais, é bastante comum o uso do termo ressonância. Em debates clínicos, com freqüência, ouvimos profissionais da área falar da necessidade de se estar em ressonância com o cliente. Tal necessidade é, inclusive, reforçada e, de alguma forma, ensinada em muitos cursos de formação.
O que se pretende dizer com ressonância é que existiria, por um lado, uma forma não-verbal de comunicação entre dois sujeitos (terapeuta e cliente), e, por outro, que esse mesmo tipo de comunicação (ressonância) seria uma maneira pela qual o profissional entenderia seu cliente, compreendê-lo-ia, acompanha-lo-ia, não o invadiria, etc.
No âmbito das práticas reichianas e neo-reichianas, ressalto dois tipos mais usuais de ressonância. Inicialmente, o sentido de ressonância foi utilizado por Reich (1975), quando cunhou a expressão "identificação vegetativa", que designaria a capacidade do terapeuta sentir e compreender a couraça do cliente, estando em contato com a sua própria couraça. Anos mais tarde, Boadella (1986) referiu-se a um outro tipo de ressonância, que significaria a possibilidade de sentir a couraça do outro em si mesmo.
Ambos conceitos de ressonância são, na realidade, formas de empatia, ou seja, maneiras instrumentais, através das quais posso conhecer o Outro.
Leitura corporal

Um outro modo neo-reichiano de se conhecer o Outro é aquele amplamente valorizado e incentivado por Lowen (1971) e pelos Trainers Internacionais da Análise Bioenergética: a leitura corporal. É senso comum na área corporal que as defesas caracterológicas originadas por situações traumáticas vividas nas fases de desenvolvimento libidinal acabam, por assim dizer, esculpindo o corpo: problemas na fase oral gerariam uma hipotonia muscular e baixa carga energética, as coxas tenderiam a ser proeminentemente separadas uma das outras, formando um nítido arco entre elas, etc, e todas as outras formas caracterológicas esculpidas no corpo, que Lowen (1971) tão bem descreveu.
Assim, através desse instrumento teórico/clínico – a leitura corporal -, seria possível se conhecer os traços de caráter, as defesas caracterológicas e a própria couraça. Ao se partir do pressuposto teórico de que um corpo esquizóide é de tal maneira, já o corpo oral é dessa outra, e assim por diante, isso implica dizer que, se conheço a forma como traumas vividos em cada fase de desenvolvimento libidinal emolduram o corpo, tal conhecimento me possibilita conhecer a patologia do cliente, sem que este explicite qualquer comunicação verbal acerca de si mesmo. Se assim é, poder-se-ia dizer que esse mesmo conhecimento me dá a possibilidade (e o poder!) de saber da subjetividade do Outro, sem que esse Outro ma comunique. Aqui, o conhecimento do Outro não passaria por algum tipo de ressonância: ele, meu conhecimento do Outro (no caso, sua patologia), seria anterior mesmo a eu ser apresentado a esse Outro por primeira vez.
Não cabe aqui discutir a validade nem a adequação da leitura corporal à la Lowen como forma de conhecimento da patologia. O que quero ressaltar é que essa maneira tão aceita e difundida de conhecer o Outro diz de uma epistemologia própria da Análise Bioenergética, que, a meu ver, insere-se no que Guba (1990) chama de uma epistemologia Positivista, a qual, segundo ele, teria origem em Descartes. Voltarei a essa questão mais adiante no texto.

Alteridade e constituição do sujeito e as "matrizes da intersubjetividade"

Antes de abordar o tema das "matrizes da intersubjetividade" – conceito desenvolvido por Coelho Jr. e Figueiredo (2004) -, creio bastante oportuno reproduzir alguns dos arrazoados teóricos introdutórios apresentados por esses pesquisadores no artigo em que discorrem sobre esse conceito, razão pela qual transcreverei na íntegra alguns dos parágrafos iniciais do referido artigo.
Sendo assim, vamos a eles: na introdução de seu trabalho, Coelho Jr. e Figueiredo (2004) afirmam que.
"O outro, o "não-eu", pode ser considerado uma aquisição recente das teorias psicológicas sobre a constituição da subjetividade. Com isso, é também recente uma discussão mais consistente e sistemática sobre a intersubjetividade e suas vicissitudes nas diferentes dimensões da pesquisa e das práticas psicológicas. Salvo algumas exceções, não resta dúvida que as teorias psicológicas são em grande medida herdeiras da tradição moderna e, mais especificamente, da tradição cartesiana e solipsista. No entanto, o campo das psicologias confronta-se, cada vez mais, com as exigências éticas colocadas pela necessidade de reconhecimento da alteridade como elemento constitutivo das subjetividades singulares."
Mais adiante, afirmam:
"É evidente que essa situação contemporânea opõe-se a grande parte da tradição filosófica moderna, que concebe o Eu como uma unidade autoconstituída, independente da existência de um Outro e de outros singulares e diferenciados".
Considerando-se a concepção acima, caberia perguntar: como o Eu poderia, então, conhecer o Outro? Guba (1990) vai dizer que, tradicionalmente, é através de uma epistemologia Positivista que esse conhecimento se daria. Argumenta que o positivismo epistemológico seria de origem cartesiana, na medida em que, segundo ele, Descartes teria uma obsessão em não se deixar enganar por algo que não fosse verdade, fazendo-o sempre buscar por aquilo que fosse o fundamento certo. Além disso, sua máxima "Penso, logo existo" derivaria do fato do filósofo sentir como a única proposição passível de ser proposta, sem que, logo após, duvidasse de si mesmo. Fala, também, de uma "ansiedade cartesiana", de seu "concernimento oculto por determinado conhecimento“, o qual seria uma doença (dis-ease), que estaria ainda hoje refletida nos positivistas e pós-positivistas, quando estes buscam saber ‘como as coisas realmente são’ e ‘como as coisas realmente funcionam’ ".
Segundo Guba, as frases acima - ‘como as coisas realmente são’ e ‘como as coisas realmente funcionam’ - seriam crenças ontológicas. Sendo assim, poder-se-ia dizer que o paradigma Positivista é baseado numa ontologia realista. Ou seja, na crença em que existe uma realidade lá fora, realidade esta governada por imutáveis leis da natureza.
Segundo o Positivismo, a função da ciência seria descobrir a "verdadeira" natureza da realidade e como "realmente" ela funciona; o propósito final da ciência seria predizer e controlar os fenômenos naturais.
Tal comprometimento com uma ontologia realista irá direcionar o positivista a praticar uma epistemologia positivista. Na medida em que para ele existe um mundo real operando de acordo com leis naturais, o pesquisador positivista deverá praticar sua ciência colocando questões diretamente à natureza e deixar que ela, a natureza, lhe responda diretamente.
Guba faz uma imagem interessante para demonstrar sua tese de como funciona a pesquisa positivista: nos diz que tal pesquisador se coloca atrás de "uma grossa parede de vidro de uma só direção, observando a natureza operar por si mesma". É como se pudéssemos descobrir os segredos da natureza, sem, contudo, alterá-la.
A exposição acima da epistemologia positivista concebida por Guba parece ratificar a afirmação anteriormente apresentada de Coelho Jr. e Figueiredo, no sentido de que o observador positivista não seria afetado pelo outro que é por ele observado, nem vice-versa. Melhor dizendo, o Eu do observador positivista não é afetado pelo Outro que é objeto de sua pesquisa, nem se daria o contrário. Há aqui um fosso entre o Eu que observa e o Outro que é observado. Mais ainda, o Eu conhece o Outro sem que nada de subjetivo do Eu entre em jogo, e versa-vice. A única coisa que entra em jogo é a natureza e suas leis, cabendo ao observador apenas observar a natureza fazer seu próprio trabalho.
Retornando ao texto de Coelho Jr. e Figueiredo, afirmam eles que o "panorama determinado pelo pensamento moderno" começou a ser abalado por Husserl, quando este trouxe para "primeiro plano o estudo do conceito e da experiência da intersubjetividade" . Segundo esses autores, será Husserl quem primeiro estabelecerá uma ponte sobre o fosso entre o Eu e o Outro, quando esse filósofo concebe uma "consciência intencional", que significaria:
"que só posso conhecer o outro de forma mediada, ou seja, por meio de minha consciência, que já não é mais uma consciência de si, fechada em si mesma, mas sim uma consciência que é sempre consciência-de-algo, aberta ao mundo, aos outros - consciência intencional".
Após inaugurar o que se denominaria de uma filosofia intersubjetiva, as idéias de Husserl desenvolvidas por alguns de seus seguidores - Scheler, Heidegger, Lévinas (que, inclusive foram seus alunos) e Merleau-Ponty, baseados, sempre, na experiência viva da relação de um self com um Outro - darão a base filosófica, a partir da qual Coelho Jr. e Figueiredo (2004) irão desenvolver sua concepção de "figuras da intersubjetividade".

As "Matrizes da Intersubjetividade"

Admitindo que "há comunicações pré-verbais, infraverbais, pré-representacionais, corporais e talvez até pulsionais, além, é evidente, das comunicações verbais" e "percepções conscientes, pré-conscientes e, quem sabe, talvez até inconscientes", aliadas ao conceito de empatia e tendo em consideração as idéias dos seguidores de Husserl acima citados sobre a relação do self com o Outro, Coelho Jr. e Figueiredo conceberam quatro tipos de "matrizes intersubjetivas", as quais teriam estreita relação com a teoria de determinados autores da psicanálise. Tais "matrizes" seriam: 1. Intersubjetividade Transubjetiva; Intersubjetividade Traumática; 3. Intersubjetividade Interpessoal; e 4. Intersubjetividade Intrapsíquica.

A "Matriz Transubjetiva"

Entende-se por "matriz transubjetiva" aquela que é formada por um solo comum, aonde o Eu e o Outro vivem num estado de quase total indiferenciação. Para Coelho Jr. e Figueiredo, essa matriz
"refere-se ao campo de uma realidade primordial e materna, concebida como continente, e em certa medida como um "continente engolfante" (anterior à separação entre externo e interno) com relação à experiência subjetiva. É a experiência de um solo de acolhimento e sustentação, em que a alteridade emerge como constituinte das experiências subjetivas, mas não por oposição e confronto, e sim por seu caráter de inclusão primordial. Trata-se, é evidente, de uma modalidade pré-subjetiva de existência".
O modo de empatia aqui seria aquele em que conheço o Outro porque o sinto em mim, e/ou porque sinto dentro do Outro. Coelho Jr. e Figueiredo apontam que as bases filosóficas para esse tipo de empatia e intersubjetividade estariam tanto em Scheler, como em Merleau-Ponty e Heidegger.
Na Psicanálise, o conceito de intersubjetividade transubjetiva apareceria, claramente, por exemplo, no conceito winnicottiano de "preocupação materna primária" e no de "objeto subjetivo". Winnicott concebe que, no início a relação mãe/bebê é do tipo "dois-em-um", aonde o bebê vive a mãe, ora como mãe/ambiente, ora como mãe objeto subjetivo, ou seja, criado por ele. Nesses primórdios da existência, do ponto de vista do bebê, há uma fusão quase total entre ele e sua mãe. Da parte da mãe, nesse período, esta também vive num estado fusional, aonde, se ela é capaz de entrar naquilo a que Winnicott denominou de "preocupação materna primária" (ou "loucura sã"), ela será capaz de saber das necessidades de seu rebento e atendê-las, exatamente por estar positivamente fusionada e identificada com seu bebê.
No padrão de "intersubjetividade transubjetiva", a constituição do sujeito é, necessariamente, dependente da relação com o outro. Melhor dizendo, o sujeito, em sua precariedade inicial, necessita ser acolhido (to be held) por uma mãe (ou substituta) suficientemente boa, no sentido de que, além de o segurar (to hold) fisicamente, ela o acolha existencialmente. Pois será o contato com o corpo da mãe, recolhendo-o em seu próprio corpo, que permitirá ao bebê sentir sua própria pele, tornando-se esta aquilo a que Winnicott chamou de uma "membrana limitante", absolutamente necessária de ser experienciada, na medida em que será ela que permitirá ao bebê sentir-se com um dentro e um fora, pois, segundo a teoria de Winnicott, é a partir da construção dos limites (bounds) corporais que um mundo interno e um mundo pessoal poderão se desenvolver.
Há que se destacar, também, nessa figura da intersubjetividade transubjetiva" a noção de Ogden (2003) do "terceiro analítico": a sobreposição e interação das subjetividades de terapeuta e paciente criariam uma terceira subjetividade, que seria, também, constitutiva do campo analítico.

A "Intersubjetividade Traumática"

Os autores basearam sua noção de “intersubjetividade traumática” em Lévinas, argumentando que, para este filósofo, “o outro concreto e singular me precede e me traumatiza, e com isso me constitui”. Observam que, para Lévinas,
“as experiências de subjetivação não deveriam ser apenas processos em que se” engorda “com os alimentos assimiláveis vindos do outro. Deveriam, também e, principalmente, caracterizar-se como convivências e transformações (e transformações requerem e implicam trabalho, e, lembremos, em italiano travaglio é dor) diante daquilo que a princípio tende-se a excluir. Aquilo que se ignora ou se rejeita e que se rechaça é justamente o que difere de mim e poderia me fazer outro.”
Finalizam sua argumentação, dizendo que “A alteridade, nessa dimensão, é traumática porque produz fraturas e exige trabalho em processos permanentes de inadaptação entre eu e outro.”
No que diz respeito à psicanálise, relacionam essa figura intersubjetiva às “teorizações psicanalíticas de S. Freud, S. Ferenczi e J. Laplanche”, na medida em que esses autores partem da idéia
“de que o outro me imporá a sua sexualidade como um forte impacto, não passível de assimilação e incorporação simbólica. A sexualidade inconsciente do outro aparece, assim, como simultaneamente constitutiva e traumática”.
Esses autores concebem que essas matrizes não se dão de forma desenvolvimentista, do tipo, primeiro uma, depois a outra. Acreditam que elas aparecem circularmente e podem, inclusive, ser simultâneas. A primazia de uma sobre a outra apareceria na concepção de determinados autores da psicanálise. Um exemplo da simultaneidade dessas matrizes seria: ainda que Winnicott não parta da primazia da “matriz traumática”, ela aparece, claramente, na sua própria concepção de trauma, que, para ele, significa “Uma quebra na continuidade da linha da existência de um indivíduo". Nessa concepção, é o outro que pré-existe ao eu que o traumatiza severamente, usualmente, por sua intrusão, ou por seu abandono.

A "Matriz Interpessoal"

Se na primeira matriz, a transubjetiva, não se pode falar de simetria nem de assimetria de sujeitos, pois o que há é uma sobreposição de sujeitos, e na segunda, a traumática, o que temos é uma assimetria da relação intersujeitos, aonde o outro traumatizador que precede o eu está assimetricamente acima do eu, na matriz interpessoal, há uma simetria de sujeitos, na medida em que, nessa figura, há o pressuposto de que a relação intersubjetiva se dá entre dois sujeitos inteiros e separados. Seria uma relação simétrica entre dois sujeitos, sem primazia do outro sobre o eu, nem sobreposição de um sobre o outro. A comunicação se dá entre dois sujeitos constituídos.
Na psicanálise, Kohut e a psicanálise intersubjetivista, como a proposta por Stolorow, são os exemplos desse tipo de figura intersubjetiva.
Essa concepção é, a meu ver, a primazia da teoria de Reich e Lowen. Kelly (1986) vai até mesmo radicalizar essa concepção, quando, numa discussão teórica sobre transferência, afirmou: “A relação terapeuta/paciente é uma relação entre dois adultos (sic).”

A "Matriz Intrapsíquica"

Essa matriz se refere a dinâmicas intrapsíquicas, ao resultado das exigências pulsionais, para a construção do próprio aparelho psíquico. Há a primazia do Inconsciente, que tem a pressão como ponto de partida, o jogo das pulsões, o que elas procuram como alvo, com a idéia de frustração por não se realizar, e a idéia de realização de prazer. O foco da investigação é naquilo que ocorre com o sujeito.
Refere-se, em seus fundamentos, "ao plano das instâncias do psiquismo (Id, Ego e Superego), aos dos objetos internos e, de modo geral, ao que em psicanálise denomina-se como o modo object-relating de funcionamento psíquico".
Nessa figura da intersubjetividade, destacam-se, dentre outras, as concepções de identificação e incorporação de Freud, a de introjeção de Ferenczi e a de identificação projetiva de Klein.
Para Coelho Jr. e Figueiredo, os autores exemplares desse campo são M. Klein, Fairbairn e Winnicott. Eu incluiria nesse padrão de intersubjetividade a obra de Guntrip (1992), autor característico do que se convenciona chamar de escola inglesa de relações objetais, na medida em que, muito influenciado por Fairbairn, seu primeiro analista, e por Winnicott, com quem fez análise após a morte de Fairbairn, também trabalhou com a noção de objetos internos e a idéia de que o sujeito se estrutura a partir de relações de objetos, tendo, inclusive, ampliado o conceito fairbairniano de anti-libidinal ego, ao conceber sua teoria de um regressed ego.
Farei, a seguir, algumas observações sobre o conceito de ressonância em Reich e de leitura corporal na psicoterapia corporal e a noção de matrizes intersubjetivas.

Perdas e Ganhos

A teoria de Reich (1975), sem dúvida, trouxe significativas contribuições, tanto para a teoria e a clínica psicanalíticas, como para a noção freudiana de corporeidade. Dentre elas, destaco a ampliação do conceito de Abraham (1953) sobre caráter – que, para Reich, significa uma história congelada -, sua noção de couraça muscular e as técnicas ativas corporais criadas por ele, muito eficientes para a suspensão do recalque. Seu acima citado conceito de “identificação vegetativa” como uma forma de ressonância, foi inovador e eficiente para que se pudesse diagnosticar o caráter e as couraças musculares do cliente, e, a partir daí, poder fazer um diagnóstico do paciente e elaborar uma estratégia de tratamento.
Foi nessa mesma linha de raciocínio e de objetivos que Lowen criou a já citada leitura corporal, tendo ensinado-a a seus alunos e os estimulado a usarem-na com seus pacientes, também como uma forma de diagnóstico e possibilidade de uma estratégia de tratamento.
A “identificação vegetativa” de Reich e a leitura corporal de Lowen são formas de conhecer o outro que se inserem na “matriz intersubjetiva interpessoal”, pois partem do pressuposto da idéia da existência de dois sujeitos inteiros e constituídos (analista e analisando). Insere-se, também, naquilo a que se denomina de “one person psychology”, que seria aquela em que o analista opera como um observador neutro do cliente – na linha de uma tradição epistemológica positivista e na noção freudiana de que o analista serviria como uma tela em branco para as projeções do cliente –, em que nada da subjetividade do analista participa da relação terapêutica.
O tipo de ressonância boadelliana em que conheço o outro porque posso sentir dentro do outro, insere-se na matriz intersubjetiva transubjetiva, na medida em que, para sentir dentro do outro, há que se estabelecer, momentaneamente, um solo de indiferenciação entre o eu e o outro. Minha experiência clínica permite-me dizer que esse tipo de campo intersubjetivo possibilita, inclusive, o surgimento daquilo que Ogden (2003) concebeu como o “terceiro analítico”.
Observaria que a teoria reichiana e neo-reichiana tendem a entender o ego como autoconstituído, prescindindo, assim, da relação com um outro para a constituição de si como sujeito. Nessas teorias, o outro funciona quase que exclusivamente como agente traumatizante, tendo muito pouca influência na formação da subjetividade do eu.
Nesse sentido, aponto para o fato de que, apesar de ser um bom instrumento diagnóstico, o uso da leitura corporal tende a reduzir a subjetividade do sujeito à sua patologia. Não há dúvida de que os traumas geram uma certa subjetividade. No entanto, a subjetividade de cada um é muito maior, vai muito além, transcende mesmo sua patologia.
Gostaria ainda de observar que há problemas implicados na noção de diagnóstico, que sempre tem um caráter prognóstico e um tratamento que se indica. Nesse tipo de approach clínico, o diagnóstico diz de uma noção estática do funcionamento do outro. Há implícito uma subjetividade e um padrão que determina a forma como vou conhecer ou desconhecer o outro. Trata-se de uma “matriz intersubjetiva interpessoal” com aspectos traumatizantes.
Se entendermos que a terapia é um espaço para que o cliente possa dizer de si, caberia perguntar: a que e a quem serve o diagnóstico? Ao terapeuta como defesa, ou para ajudar o outro?


Conclusão

Nesse trabalho, discorri sobre dois dos mais usuais tipos de ressonância em psicoterapia corporal: a “identificação vegetativa” de Reich e a proposta por Boadella, bem como a leitura corporal criada por Lowen, dizendo que se trata de modos de conhecer o outro. Observei que os dois primeiros são maneiras empáticas de conhecimento e que a leitura corporal loweniana se refere a um instrumento positivista / cartesiano de conhecimento do outro.
Apresentei as quatro “matrizes da intersubjetividade” concebidas por Coelho Jr. e Figueiredo (2004) a intersubjetividade transubjetiva, intersubjetividade traumática, intersubjetividade interpessoal e a intersubjetividade intrapsíquica.
Relacionei aqueles dois tipos de ressonância e a leitura corporal com as matrizes intersubjetiva.
Expressei minha opinião de que a teoria e a técnica reichiana e neo-reichiana tem contribuído para inúmeros avanços da clínica psicoterápica e apontei algumas falhas, que observo no uso exclusivo da leitura corporal como diagnóstico. Questionei a própria validade de se fazer diagnóstico, na medida em que este parece ser um instrumento que parte do pressuposto de que o eu conhece o outro sem que o outro diga de si, bem como o diagnóstico tende a ter uma noção estática do funcionamento do outro.
Fiz uma imagem do terapeuta como a rede que acolhe a bola (o cliente), sugerindo sem cairmos no erro do ecletismo, que se agregue outras “linhas” a sua estrutura como uma forma de colorir e reforçar a rede.



B I B L I O G R A F I A

Abraham, Karl 1953 [1921]: “Contributions to the theory of the anal character”. In: Selected Papers on Psychoanalysis I. New York, Basic Books.
Boadella, David 1986: “Formative Process and Organizing Field”, Biosynthesis Training Manual, v.1, n. 1, p. 6.
Coelho Jr., Nelson Ernesto 2003: “Da Intersubjetividade à Intercorporeidade: Contribuições da Filosofia”.
Coelho Jr., Nelson Ernesto e Figueiredo, Luís Cláudio 2004: “Figuras da Intersubjetividade na Constituição Subjetiva: Dimensões da Alteridade”, Interações, vol. IX, no. 17, pp. 09-28.
Cotta, José Alberto 2000: “O Pecado Capital do Édipo versus O Bebê Que Só Quer Ser”, Anais do “II International Congress of Biosynthesis”: www. biossíntese.psc.br/txtcongress2000/congress2000.htm. 2000, Salvador, Brasil.
Guba, Egon 1990: The Paradigm Dialog. Newbury Park, SAGE Publications.
Guntrip, Harry 1992: Schizoid Phenomena, Object Relations and the Self. - New York, International University Press.
Lowen, Alexander 1971 [1958]: The Language of the Body. New York, Macmillan.
Ogden, Thomas 2003 [1994]: Os Sujeitos da Psicanálise. São Paulo, Casa do Psicólogo.
Reich, Wilhelm 1975 [1933]: Análisis del Carácter. Buenos Aires, Paidós.
Winnicott, D. W 1986: Home is Where We Start From. New York, Norton.

José Alberto Moreira Cotta
Psicoterapeuta Corporal, Doutorando em Psicologia Clínica – USP, Mestre em Psicologia Clínica – PUC/SP, Trainer Internacional da “Internacional Foundation of Biosynthesis – IFB” – Heiden, Suíça, Professor Convidado do Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae, Membro da Associação Brasileira de Psicoterapia - ABRAP.
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